Art Law: responsabilidade e colaboração
Estrutura multidisciplinar une Direito, Ciência e Arte
Por: Jocê Rodrigues, Douglas Quintale
“Art law, colocado de forma simples, é a parte do direito que envolve diversas disciplinas, que protege, regula e facilita a criação, uso e comércio de arte”. Assim, de forma simples e direta, Robert C. Lind, Robert M. Jarvis e Marilyn E. Phelan, autores do livro Art and Museum Law: Cases and Materials (Carolina Academic Press, 2002), definem a discreta especialidade jurídica que nunca deve caminhar sozinha.
Nos conturbados e velozes tempos em que vivemos, a união entre Direito, Ciência e Arte tornou-se indispensável para a solução de casos que envolvem autoria e autenticidade de obras de arte. Através dessa junção é possível vencer barreiras que até pouco tempo pareciam intransponíveis. Mesmo que num primeiro momento elas pareçam distantes uma da outra, essas expertises se encaixam perfeitamente quando conduzidas do jeito certo.
Unindo disciplinas como química, física, história da arte, direito, entre outras, temos um campo multidisciplinar que cativa muita gente por seus métodos e suas possibilidades. Ainda pouco discutido e aprofundado por aqui, o campo de atuação conhecido como art law pode até ter raízes rasas, mas já se firma bem nessa altura do campeonato. A controversa história de seu surgimento e evolução pode ser dividida em dois importantes momentos.
O primeiro se deu entre as décadas de 1970 e 1980, principalmente nos Estados Unidos, quando importantes artigos e livros foram publicados por autores como Leonard D. DuBoff, John Merryman, Albert Elsen, Tad Crawford e James J. Fishman. Décadas antes, outros textos sobre a relação entre o mercado de arte e direito já haviam sido publicados também em países da Europa. No entanto, foi com os americanos que essa relação começou a ser discutida com maior seriedade e a formar um nicho mais sólido.
Nesta época de efervescência e entusiasmo, o perito judicial em obras de arte Stephen E. Weil, por muito tempo administrador do Smithsonian Institute, via com olhos desconfiados o crescimento do interesse de estudantes de direito e de jovens advogados no assunto. No célebre artigo Some Thoughts on “Art Law”, de 1981, Weil questiona de forma racional a validade e o futuro de tal empreitada, chegando a alertar os companheiros sobre um possível naufrágio ― que felizmente não aconteceu.
Fato é que o tema foi ganhando cada vez mais notoriedade, com simpósios, workshops e cursos de especialização oferecidos em grandes e respeitadas faculdades. Foi neste primeiro período, que a natureza única da arte passou a ser reconhecida pelos legisladores como digna de um tratamento legal mais sério e rigoroso. Fundamental para o desenvolvimento e maior regulamentação do mercado de arte como o conhecemos.
O segundo período tem seu pontapé inicial dado pelo escândalo envolvendo a galeria nova iorquina Knoedler. Em 2011, a instituição recebeu diversos processos de colecionadores que a acusavam de ter vendido pelo menos 40 obras falsificadas de artistas como Jackson Pollock, Willem de Kooning, Lee Krasner, Barnett Newman e Mark Rothko. Um prejuízo de mais 80 milhões de dólares aos compradores e uma sombra de desconfiança que estendeu a todas as galerias e casas de leilão do mundo inteiro. Um evento de tamanha magnitude, que serviu não apenas para dar manchete de jornal e noticiário, mas também para mudar o paradigma então vigente no art law.
Mesmo que diversos sinais apontassem a fragilidade da procedência das obras vendidas, somente com a ajuda da ciência foi possível confirmar a fraude cometida pela Knoedler. Contratado pela própria diretora da galeria, o cientista forense James Martin, fundador da Orion Analytical e atual diretor de pesquisa científica da Sotheby’s, conduziu diversos testes com equipamentos sofisticados que deram o veredito que afundou uma das mais conceituadas e antigas galerias americanas.
Depois da polêmica, houve um aumento exponencial de investidores interessados em apoiar laboratórios de análise. Este seria um marco, um verdadeiro ponto de viragem e um divisor de águas. Não se deve descartar, entretanto, o valor e o mérito de outros profissionais nessas investigações. Curadores, connoisseurs, historiadores da arte, pesquisadores e cientistas: cada um deles desempenha um papel fundamental na busca pela verdade.
No Brasil, diversos escritórios de advocacia criam departamentos de art law, mais como um serviço para inglês ver do que por interesse real em ajudar na resolução de casos ligados ao nebuloso mercado de arte e seus desdobramentos. Falta interesse, seriedade e, mais do que isso, falta preparo e conhecimento.
O prejuízo pela identificação errada de uma obra pode ser bem salgado. Financeira e culturalmente falando. E quem mais perde é a sociedade como um todo, já que pode ser ludibriada e induzida a jogar pérolas aos porcos e a comprar gato por lebre. Afinal, quando alguém sai de casa para ver um Bouché numa galeria ou em um museu, o que se espera encontrar é, claro, uma obra pintada por Bouché, não por um falsário, mesmo que talentoso.
O mesmo acontece em outras manifestações artísticas, a literária entre elas. É imensa a importância de identificar a autoria de obras clássicas ou perdidas, ainda que para alguns não pareça fazer sentido as diferenças entre Dante e Petrarca, entre Goethe e Schelling, entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Nesse sentido, torna-se imperioso dar a César o que é de César.
Hodiernamente, a intersecção entre a esfera jurídica e o fazer artístico se faz, mais que necessária, essencial. É ela que garante idoneidade moral e intelectual na relação entre o artista e o proprioceptor que irá usufruir do seu trabalho. Como qualquer outro setor da sociedade, tal ligação também se baseia em contratos, garantias, direitos e deveres que só o rito jurídico pode assegurar e proteger ― com um deslize aqui e outro ali, é verdade, mas sempre disposto a remediar, caso necessário.
Muito embora o Direito quase sempre figure injustamente em segundo plano, os frutos dessa parceria têm se mostrado cada vez mais numerosos e representativos, com conquistas importantes, como o da Knoedler.
O Curioso Caso José de Anchieta
O poema épico De Gestis Mendi de Saa (A Saga de Mem de Sá) é tido como a primeira obra da literária nacional. É comumente dito de autoria do espanhol José de Anchieta, figura central na colonização do Brasil, recentemente alçado ao posto de santo pelo Papa Francisco. Anchieta, além de exímio conhecedor e catequizador religioso, era também um douto e exímio literato. Escreveu poemas, peças de teatro, autos e sermões de inegável qualidade e erudição. Seu trabalho mais famoso é o De Beata Virgine Dei Matre Maria, dedicado à Virgem Maria, de quem sempre foi reconhecido devoto.
De caráter épico e escrito em latim, o De Gestis Mendi de Saa rende homenagem à Mem de Sá, terceiro Governador Geral do Brasil, descrito ali como um herói cristão enviado por Deus para derrotar a ameaça indígena. A primeira publicação do livro data de 1563, mas saiu sem o nome do autor. Para o padre Armando Cardoso, tradutor e estudioso de Anchieta, responsável pela primeira e tardia edição do livro no Brasil, em 1958, foi a humildade do jesuíta que o impediu de se identificar como autor.
Uma escolha que levantou dúvidas sobre a paternidade da obra e provocou acaloradas discussões entre alguns estudiosos. Ainda que hoje seja quase um consenso de que a autoria seja realmente de José de Anchieta, algumas nuvens cinzentas ainda pairam sobre a questão. Mesmo sem perigo de tempestade, é sempre bom estar atento.
O paradeiro do manuscrito original é inteiramente desconhecido. Acreditava-se que ele havia sido queimado durante um incêndio numa pequena casa em Algorta, na Espanha, onde residia uma descendente da família de Anchieta. Tempos depois, chegou-se à conclusão de que aquele também não era o manuscrito original, já que continha algumas incongruências. Ou seja, o manuscrito original da epopeia fundadora da literatura nacional ainda está sem paradeiro certo.
Recentemente foi encontrado no município de Anchieta, no Espírito Santo, um outro manuscrito contendo o De Gestis, levantando suspeitas de que ele pode ser uma cópia autografada perdida, que fora oferecida à Mem de Sá pelo missionário jesuíta, que retirou-se definitivamente em 1587 para a cidade na época chamada de Reritiba. Uma investigação que certamente requer cuidado, paciência, responsabilidade e, acima de tudo, colaboração.
Com a ajuda de uma equipe de profissionais de diversos campos científicos (codicologia, história, grafotecnia, literatura, física, química, restauração e paleologia), será possível verificar a autenticidade do documento literário encontrado. Um esforço em conjunto que mostra a essência do que hoje denominamos art law.
O resultado dessa empreitada pode dissolver impasses e ser uma peça-chave no quebra-cabeça sobre a autoria do poema. No meio do caminho, outras possibilidades podem surgir para ampliar ainda mais o espectro da pesquisa, trazendo novos pontos e, quem sabe, novos direcionamentos culturais e jurídicos.
Enquanto os resultados de tão interessante pesquisa não vêm à luz, esperamos que cada vez mais, olhos e ouvidos se voltem para o espírito curioso, aglutinador e colaborativo que guia o art law. Fazendo lembrar ao perito, ao assistente técnico e ao advogado, que não existem atalhos em análises desse tipo e que, como assegura Otto Kurz no clássico Fakes, “cada caso deve ser estudado em seus próprios méritos”.
* Publicado originalmente no JOTA.