Entre fantasmas, bruxas e trasnos: o Realismo Mágico na literatura galega
Por: Jocê Rodrigues
“As fábricas de sonhos são as que melhor funcionam na Galícia”
(Manuel Rivas)
O termo foi cunhado na Alemanha pelo crítico Franz Roh (1890-1965) para se referir à pintura pós-impressionista, mas logo passaria a fazer parte do vocabulário dos escritores, críticos e leitores de outras partes do mundo. Embora não seja um movimento formal, o realismo mágico, realismo fantástico ou ainda realismo maravilhoso, ganhou a largas braçadas grande espaço na literatura mundial nas décadas de 60 e 70, principalmente com o Boom Latino-americano. Um dos fatores fundamentais para que isso ocorresse foi o lançamento do livro Cem Anos de Solidão (1967), de Gabriel García Marques, laureado com o Nobel de Literatura em 1982. Mas falta consenso.
Na opinião do jornalista e escritor espanhol Rámon Chao, por exemplo, o que hoje conhecemos e interpretamos como realismo mágico nasceu não com García Márquez, Miguel Ángel Astúrias ou Alejo Carpentier; mas sim na comunidade autônoma da Galícia. A afirmação é exagerada, dada a complexidade que envolve o tema, mas não deixa de ser interessante pensar em um realismo mágico galego.
Terra de mistérios profundos e paisagens fascinantes, a Galícia já foi descrita por Manuel Rivas como um “bonsai atlântico” e seria o lugar ideal para o florescimento deste tipo de escrita que tão harmoniosamente une o fantástico e o real.
O pensamento coletivo de seus habitantes, repleto de criaturas fantásticas e mistérios, pode ser explicado pelas raízes celtas da região. Antes da chegada dos romanos, em 137 a. C., o noroeste da Península Ibérica era habitado por um conjunto de tribos celtas conhecidos como galaicos ou castrenses. Algumas crenças destes povos, assim como suas construções tipicamente circulares (castros), ainda marcam território e persistem na cultural local.
Este traço ancestral pode explicar o motivo da produção de obras com elementos sobrenaturais e mágicos ser bem mais forte ali do que em qualquer outro lugar da Espanha. Para o povo galego, principalmente de meados do século XX, bosques e florestas portam propriedades sobrenaturais. As plantas, os animais e até objetos inanimados como embarcações são dotados de significados, poderes e forças místicas que são classificadas e ordenadas de modo inconsciente em suas cabeças.
Os estilos literários que dominavam as penas dos autores espanhóis no pós-guerra eram o naturalismo e o realismo social, ambos contrários ao elemento narrativo fantástico. Era preciso falar objetivamente das dores, da fome, das mortes e assumir abertamente posições políticas. Qualquer um que fugisse destes temas corria um sério risco de ficar de fora dos debates intelectuais ditos importantes e ser considerado um marginal.
Felizmente, houve quem escolheu ir contra as normas e fugir da cartilha. Nomes como Vicente Risco (1884-1963), Rafael Dieste (1899-1981) e Ánxel Fole (1903-1986). Escritores galegos que, apesar de abordarem o misterioso, o fantástico e as crenças populares, estavam um pouco distantes do que viria a ser considerado como realismo mágico.
Esquecido ou equivocadamente considerado irrelevante por muitos estudiosos, o realismo mágico galego pode hoje ser resumido a duas figuras centrais: Álvaro Cunqueiro (1911-1981) e Wenceslao Fernández Flórez (1885-1964).
Sonhadores solitários
É provável que a primeira pessoa a usar o termo para falar de literatura espanhola tenha sido o crítico Antón Risco, em 1945, quando publicou na edição 29 da revista La Estafeta Literária um ensaio dedicado ao livro El Bosque Animado (1943), de Wenceslao Fernández Flórez.
Nascido em Corunha, Flórez foi um dos escritores de maior sucesso da Espanha no início do século passado. Na juventude, almejava a carreira de médico, mas foi obrigado a mudar de planos com a morte do pai. Ganhou reconhecimento como jornalista e escreveu seu primeiro romance em 1910. Os trabalhos destes primeiros anos se caracterizam por uma crítica da sociedade contemporânea e pela tentativa de construir um mundo utópico. Apesar do reconhecido pessimismo que tinha como marca registrada, fazia do humor e da ironia peças fundamentais da sua escrita, seja como autor de ficção ou jornalista político.
Considerado por alguns como uma obra de menor magnitude e por vezes definida como ingênuo e juvenil, El Bosque Animado foi publicado quando o autor já estava com 58 anos de idade. Na narrativa, vemos árvores que meditam profundamente sobre suas condições existenciais e camponeses que se aventuram entre fantasmas, meigas (bruxas) e trasnos – figuras recorrentes do imaginário rural galego.
De leitura agradável e contagiante, o livro sobressai-se pela ternura e pelo tom muitas vezes poético da escrita empregada. O mesmo lirismo permeia a ótima e deliciosa adaptação para o cinema de 1987, dirigido por José Luis Cuerda.
Mesmo optando por não escrever em galego, a terra da infância de Flórez estava sempre presente em sua escrita. As cores, os sons, os cheiros e as formas. Uma busca incessante pelas tradições culturais de sua terra natal, pautada também pela recordação de suas origens celtas e ao encanto da natureza.
Em contrapartida, toda a obra de Álvaro Cunqueiro foi escrita em sua língua natal. A única exceção foi Un Hombre que se Parecía a Orestes (1968), originalmente escrito em castelhano. Cunqueiro, assim como Flórez, também foi jornalista, escritor e poeta. Filho de um boticário de Lugo, devorou grande volume de novelas estrangeiras na adolescência, antes de se dedicar ao estudo da filosofia. Era fervorosamente apaixonado pela terra onde nasceu e por sua língua e paisagens bucólicas.
O traço mais marcante de Cunqueiro é a reinterpretação dos mitos e dos clássicos à sua maneira. Foi por esse método que personagens como o Rei Arthur e o industrioso Ulisses se transformaram em galegos tradicionais, vivendo suas aventuras e conflitos em contextos modernos.
A paixão por sua terra extrapola o mundo interior do autor e se faz presente em praticamente todo o seu trabalho. Em Merlín y Familia (1955), rende homenagem ao folclore galego, ao mesmo tempo em que o mescla com a cultura medieval europeia. O livro não foi muito bem recebido nos círculos literários da época, dominadas, pelo compromisso com o naturalismo e questões sociais.
Por sorte, Cunqueiro não se deixou abalar pelas críticas dos colegas e continuou a escrever e publicar obras nos mesmos moldes de Merlín. Livros como Las Mocedades de Ulises (1960), Si o Vello Sindbad Volvese ás Illas(1961) e Las crónicas del Sochantre(1970), também carregados de sentimento, paixão e inventividade.
Podemos dizer que a publicação de El Bosque Animado foi a calmaria antes da tempestade literária que arrebataria as décadas seguintes. Depois dele, seu autor não voltaria a se aventurar com a mesma força pelo “estilo”, tornando-se mais famoso e reconhecido pelas sátiras políticas e sociais em livros e artigos com forte carga humorística. Enquanto isso, Álvaro Cunqueiro seguiria fiel à mescla de realidade e fantasia, de ordinário e extraordinário até o fim da carreira.
Flórez e Cunqueiro são autores que não deveriam faltar na estante de qualquer leitor, principalmente nas de quem admira o que se convencionou chamar de realismo mágico. Porém, suas obras enfrentam grandes dificuldades para cruzar o atlântico e chegar às mãos do leitor brasileiro, sendo a principal delas a aparente falta de interesse de editores, graças ao limbo a que os dois foram injustamente relegados.
* Publicado originalmente no Estadao da Arte.