Direito e ópera: promessas, dificuldades e contradições de uma conversa fora do tom
É imperioso que estudantes de Direito estejam atentos à riqueza das histórias contadas nos enredos do drama lírico
Por: Jocê Rodrigues
Desde que foi criada na corte italiana do século XVII, a ópera desempenhou papel fundamental na formação intelectual e cultural do povo europeu. É, por assim dizer, o mais próximo de uma gesamtkunstwerk (obra de arte total) que o Ocidente foi capaz de produzir, mesmo com as revoluções tecnológicas posteriores. Em si mesma e a uma só vez, abarca literatura, teatro e música.
Se é correta a afirmação de François Ost de que o direito não surge do fato (ex facto ius oritur), mas sim de um relato (ex fabula ius oritur)1, é imperioso que juristas e estudantes de Direito estejam atentos à riqueza das histórias contadas nos enredos do drama lírico, seja na superfície ou nas entrelinhas.
Seja no debate público ou privado, perdemos a capacidade de enxergar nuances. Se não é preto, é branco. Se não é em cima, logo, está embaixo. Se não está comigo, é óbvio que está contra mim. Se não pensa como eu, é burro ou mal informado. E assim ad infinitum. No cenário atual, nos falta tato e falta tino.
Explico. Embora advogados e juízes quase nunca desempenhem papéis de grande destaque em produções do estilo, a lei se coloca como elemento fundamental em muitas delas, abrindo a possibilidade de análises que vão muito além de algumas de nossas já vetustas cartilhas de Hermenêutica.
Homicídio, casamento, divórcio, testamento, roubo, pena de morte, Constituição. Todos os temas relevantes para o trabalho dos operadores do Direito podem ser facilmente encontrados em tramas operísticas.
Basta ter olhos para ver, ouvidos para escutar e um novo mundo então se abre.
Assim como acontece em O Mercador de Veneza, O Nome da Rosa e as Ficções borgeanas, é possível encontrar complexas implicações morais e as controversas manifestações da natureza humana em obras como Aida, Das Rheingold, Madama Butterfly, Le Nozze di Figaro, Rigoletto, Il Barbiere di Siviglia e tantas outras. O que significa que partituras, libretos e melodias podem nos ajudar a reconhecer e compreender alguns dos vícios e virtudes também nos moldes de leitura da lei. Pode-se ainda comparar os contextos sociais e legais da época em que uma ópera foi escrita com as escolhas e soluções apresentadas pelo autor e traçar paralelos com a legislação atual, sempre com o devido cuidado para não incorrer em anacronismos..
Para alguns, talvez assuste o fato de que o cruzamento entre as linhas narrativas e interpretativas entre Direito e ópera se revele tema nóvel e desafiador, com muitas veredas a serem ainda descortinadas e exploradas. Um caminho a ser construído, passo a passo, metro a metro, nota a nota. No entanto, estas são barreiras que podem ser facilmente removidas por vontade, interesse e um certo toque de espírito desbravador.
Entre os interessados nessa relação mundo afora, alguns nomes ganham destaque. É o caso de Filippo Annunziata e Giorgio Fabio Colombo, organizadores do excelente e pioneiro Law and Opera (Springer, 2017)2. No livro, as bases do estudo de Direito e ópera estão divididas em três diferentes frentes: law in the opera, law on the opera e law around the opera. Dentro dessas três esferas estão desde os estudos sobre direitos autorais e de contratos de produção, até os temas jurídicos que predominam em alguns enredos.
Os recortes escolhidos pelos pesquisadores convidados (dentre eles o notável jurista brasileiro Marcílio Toscano Franca Filho) são abordados com categoria e elegância, sem fraquejar no aspecto técnico, tão caro e necessário ao sistema jurídico. A importância de tão ousado passo não pode ser ignorado e os devidos louros devem ser distribuídos. Não dá para deixar de notar a relevância da construção de uma nova ponte ou, para quem pende para a visão de Richard Posner, de uma nova e frágil passarela3 que ajuda a fazer travessia para área isolada.
Ainda que as correntes existentes no estudo entre Direito e literatura sejam inevitavelmente projetadas nas análises existentes entre Direito e ópera, é importante salientar que existem diferenças marcantes entre elas. Afinal, estamos a falar de experiências estéticas únicas, com todas as suas idiossincrasias e complexidades. Sem olvidar de que as primeiras pesquisas no primeiro campo já contam mais de um século, enquanto o segundo mal acaba de nascer.
Para escapar de eventuais armadilhas teóricas é preciso então ter atenção, discernimento e algum jogo de cintura. Não em forma de malandragem e desonestidade intelectual, mas na forma de verve e de capacidade de ligar pontos aparentemente distantes. A juíza norte-americana Ruth Bader Ginsburg é um bom exemplo disso.
Apaixonada por ópera desde os 11 anos de idade, há tempos ela vem contribuindo para fomentar um diálogo de alto nível entre as duas áreas. Dona de um repertório invejável, arquitetou uma forma inovadora de discutir o assunto ao levar músicos profissionais para apresentarem árias e duetos em suas palestras, a fim de ilustrar seus argumentos sobre a fecunda relação entre os universos jurídico e o lírico. Sua ligação com este último é tão forte que ela acabou por se tornar personagem de uma ópera cômica.
Escrita em 2013 por Derrick Wang, a obra intitulada Scalia/Ginsburg mostra de forma bem humorada e inteligente a longa amizade cultivada entre Ginsburg e o juiz Antonin Scalia (1936-2016)4, que integrava o lado oposto do espectro ideológico defendido pela juíza pop ― uma liberal de carteirinha e certidão. Pode-se dizer que a improvável relação entre eles foi costurada pelas linhas de partituras de grandes mestres, capazes de obnubilar qualquer diferença intelectual, política ou ideológica.
Enquanto floresce em países como Itália e Estados Unidos, a investigação da relação entre Direito e ópera resta quase inteiramente ignorada entre os pesquisadores brasileiros. Por aqui ela ainda carece de atenção e trato. Não ignoro, é claro, o fato de que algumas dificuldades se façam presentes para qualquer um que queira se embrenhar em ainda tão pouco iluminada vereda. Ainda mais em terras tupiniquins.
Uma delas, talvez a mais significativa, seja a ausência de locais onde se pode assistir apresentações do tipo. É muito mais fácil encontrar um teatro do que uma casa de ópera, por exemplo. Do mesmo modo, é inegavelmente mais fácil comprar um livro do que conseguir um bom libreto (mais barato também). As opções não são muitas, é verdade, mas, ainda assim, elas existem.
Mesmo com produções escassas, graças a cortes constantes no orçamento e a polêmicas que envolvem a gestão de espaços como o Theatro Municipal (São Paulo e Rio de Janeiro), não se pode cair no velho conto de que a ópera e, de modo mais geral, a música de concerto está morrendo. Ladainha que vem sendo cantada e noticiada desde o alvorecer do século XX5.
Além de certa tendência conservadora de se opor a novas ideias e de se resguardar dentro dos resistentes muros da tradição, Direito e ópera dividem outra característica em comum: as duas são difíceis de morrer.
Com tantos desafios e contratempos, fica a pergunta: é possível produzir estudos de qualidade que unam Direito e ópera nestes tristes trópicos? É cedo para dizer. Mas, na esperança de que a resposta para tão espinhosa questão venha futuramente a ser um retumbante “sim!”, aos corajosos e não acomodados pesquisadores, juristas e estudantes de Direito, fica o desafio.
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1 François Ost, Contar a Lei: As Fontes do Imaginário Jurídico (Unisinos, 2005). Visão muito bem explicada também por María José Falcón y Tella em seu livro Derecho y Literatura (Marcial Pons, 2015).
2 Giorgio Colombo também é autor de L’avvocato di Madama Butterfly (O barra O 2016), no qual analisa as relações entre o Direito em vigor nos Estados Unidos e o japonês através das problemáticas conjugais da ópera de Puccini.
3 Ao falar de Direito e Literatura, Posner, em Law and Literature: A Misunderstood Relation, enfatiza a necessidade de levar em consideração as diferenças entre as duas áreas, de modo a evitar certos equívocos de natureza apaixonada.
4 Scalia serviu de inspiração para a peça The Originalist, que teve sua estréia em 2015. Escrita por John Strand, a peça discute, entre outras coisas, a chamada abordagem originalista da Constituição, doutrina que encontrava em Scalia um de seus maiores defensores.
5 Alex Ross, Escuta Só: do Clássico ao Pop (Companhia das Letras, 2010).
* Publicado originalmente no JOTA.