Nós, os imprudentes: a interpretação do Direito ladeira abaixo

Mas ainda há esperança de que essa luz não seja de um trem


Por: Jocê Rodrigues

Vivemos para apreciar a derrocada da interpretação. Como um condenado no cadafalso, ela dá seus últimos suspiros antes que um simples puxão de alavanca arranque o chão de seus pés e com ele, o último suspiro.

Seja no debate público ou privado, perdemos a capacidade de enxergar nuances. Se não é preto, é branco. Se não é em cima, logo, está embaixo. Se não está comigo, é óbvio que está contra mim. Se não pensa como eu, é burro ou mal informado. E assim ad infinitum. No cenário atual, nos falta tato e falta tino.

No âmbito jurídico, o debate sobre alcance e limites da interpretação é rica, extensa e complexa. Rendeu e continua a render teses, livros e artigos. No Brasil, poucos abordaram o espinhoso tema com a elegância e clareza que fez Luiz Alberto Warat. Tudo bem que ele não era brasileiro puro-sangue, mas o que se pode fazer se o hermano ajudou a iluminar alguns dos recantos mais sombrios do nosso Direito?

Embora ainda seja visto por muitos como um doidivanas, com seu espírito libertário e apaixonado, Warat desafiou a mentalidade de uma época. Foi muito além do que até então era senso comum e fez estrago em certas verdades absolutas do mundo jurídico. Um furacão necessário que chacoalhou as estruturas do ensino da disciplina no país na década de 1970 e 1980.

Dentre suas mais duras críticas está aquela voltada à interpretação formalista da lei. Foi um apaixonado, sem rédea e cabresto que lhe desse freio. Em suas próprias palavras: “Só os apaixonados contestam, protestam, procuram a transformação […] A paixão é o elemento da liberdade.” Bonito, mas talvez utópico demais.

O problema é que algumas paixões levam também a lugares não tão agradáveis. Alguns, na defesa de suas paixões, excedem, invadem, desqualificam e agridem. Exacerbam em míopes devoções a líderes, ideologias ou preferências de modo raivoso e irracional. E nem adianta dialogar. Se for preciso, transformam papagaio em galinha, só para defender um ponto vista. Atitude ilógica, irracional e covarde, mas que lhes serve como recurso no admirável mundo novo da pós-verdade.

Quando falamos em interpretação, o Direito é terreno fértil, de onde podem brotar gerânios ou gerúndios. Tudo depende da habilidade de quem o cultiva. “Nas atividades cotidianas”, escreveu Warat, “os juristas encontram-se fortemente influenciados por uma constelação de representações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, hábitos de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente seus atos de decisão e enunciação.”1 Interpretações embotadas por vícios que escondem motivações por vezes sombrias.

Quem sofre é a Constituição, que mesmo não sendo um exemplo de escrita, tem sofrido com o abuso da comunidade jurídica. Fazem dela gato e sapato. Usam e abusam de suas lacunas e artigos mal redigidos. Mais do que mal-interpretada, ela é superinterpretada.

Até mesmo Umberto Eco, que sacudiu a década os anos 60 com seu conceito de Obra Aberta, pensou melhor sobre os superpoderes que estavam sendo dados ao leitor. Talvez tenha se assustado com a quantidade de impropérios e disparates surgidos graças ao livro.

Quando, décadas mais tarde, ele publicou Interpretação e Superinterpretação, teve que admitir que, assim como tudo na vida, interpretação também tem limite. “Tenho a impressão de que, no decorrer das últimas décadas, os direitos dos intérpretes foram exagerados”, escreveu.

Nas arcadas da justiça não faltam superinterpretadores. Não se enganem, apesar do nome pomposo, não se trata de pessoas dotadas de superpoderes, mas sim de uma grave fraqueza. Estão por toda a parte. Em fóruns, tribunais e gabinetes, a interpretar a letra da lei como bem entendem. Sobram arbitrariedades e faltas graves, sob a desculpa de que cada um pode ter seu próprio entendimento da lei.

Enquanto isso, nas redes sociais pululam opiniões e “textões” carregados de verdades universais, escritos ou reproduzidos por quem mal sabe interpretar uma lista de compras.

Se interpretar é uma prudência, como defende o professor e advogado Eros Grau2, sinto que estamos fadados à bancarrota, já que o mundo pertence aos imprudentes. Não imprudentemente poéticos, como no título do romance de Valter Hugo Mãe. Apenas imprudentes, mesmo.

No entanto, existe luz no fim do túnel. E enquanto os operadores do Direito tiverem possibilidade de acesso a pensamentos desafiadores como os de Luis Alberto Warat, ainda há esperança de que essa luz não seja de um trem.

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1 O autor possui vasta obra publicada. Uma das mais interessantes sobre a interpretação é o primeiro volume da série Introdução Geral ao Direito (Interpretação da Lei – Temas Para Uma Reformulação), publicado por Sergio Antonio Fabris Editor, em 1994.

2 Em 2002 foi publicado o livro Ensaio e Discurso Sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. Ensaio instigante sobre problemas que ainda cercam nosso cenário jurídico.

* Publicado originalmente no JOTA.

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