Direito e ópera: promessas, dificuldades e contradições de uma conversa fora do tom

É imperioso que estudantes de Direito estejam atentos à riqueza das histórias contadas nos enredos do drama lírico

Por: Jocê Rodrigues, Joyce Finato Pires

1. O mal é para todos?

Assim que o criador de uma obra artística ou intelectual morre, ele juridicamente passa a atender pela insípida e nada animadora alcunha de de cujus. A lei então estabelece que sua família herde os seus direitos patrimoniais e, a partir daí, tem então 70 anos para tirar proveito econômico de seu trabalho.

Após esse tempo, ela cai em domínio público, de acordo com a Lei nº 9.610/98. O mesmo ocorre em diversos países. O que varia é o período estipulado para que isso possa ocorrer – uns mais compridos, outros mais curtos, mas todos a partir de 50 anos, como acordado na Convenção de Berna, em 1886.

No Brasil e na Alemanha, por exemplo, o prazo de proteção das obras literárias, artísticas e científicas é da vida do autor mais 70 anos após sua morte. Ou seja, 70 anos de sua passagem de pessoa física para o estado de de cujus. E por falar em prazos parecidos, os dois países ainda se veem às voltas com um assunto incômodo: a entrada em domínio público de Mein Kampf, também conhecida como a bíblia nazi.

Publicada em 1925, quando Adolf Hitler estava preso por traição, o livro traz toda a ideologia de ódio, racismo e intolerância que viriam a ser identificadas como alguns dos pilares da ideologia responsável pelo extermínio de aproximadamente 6 milhões de judeus.

Em 2016 o mundo editorial ficou em polvorosa com o anúncio de uma edição crítica da obra a ser lançada na Alemanha, feita por historiadores e com quase duas mil páginas. Pois bem, mesmo com muita resistência, a publicação saiu, vendeu dezenas de milhares de exemplares e até recebeu o prêmio da Sociedade Precisa de Ciência da Associação alemã Leibniz.

Aqui no Brasil, a primeira edição do livro saiu em 1934, se tornou best-seller e durante 80 anos, 5 editoras lançaram suas versões. Em 2016, quando o título tinha acabado de cair em domínio público, algumas editoras nacionais já estavam em alvoroço, preparando suas edições da obra maldita, entre elas a Centauro e a Geração Editorial. No entanto, os planos delas foram frustrados com a decisão do juiz Alberto Salomão Junior, da 33ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, de proibir a publicação do livro por entender que ele incita práticas de intolerância contra grupos sociais, étnicos e religiosos.

A discussão, que já andava bem animada, ficou ainda mais acalorada com essa proibição e virou um verdadeiro cabo de guerra. De um lado, aqueles que acreditam que tal proibição é na verdade um ato de censura; do outro, aqueles que vêm a iniciativa como acertada, alegando que o conteúdo do livro fere a Constituição. Enquanto isso tudo ocorria, exemplares de edições clandestinas eram vendidos sem nenhum problema em bancas de jornais espalhadas pelo Brasil.

Por se tratar de tema ainda fresco, tudo indica que o assunto ainda vai dar muito pano pra manga, dentro e fora dos tribunais.

2. Dr. Bacamarte descolado

Outra discussão recente e que nos remete às problemáticas do domínio público aconteceu em 2014, quando a escritora de livros infanto-juvenis Patrícia Secco iniciou um projeto que tinha como intuito a simplificação da linguagem do livro O Alienista, um dos tantos clássicos de Machado de Assis (1839-1908).

Sua intenção era publicar uma edição com palavras mais acessíveis para os jovens, lançando mão de vocabulário mais fácil e “atraente” para a turma 2.0. Difícil saber exatamente como uma mudança tão significativa de linguagem afetaria a figura do sisudo Simão Bacamarte, “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil”.

Qual seria o destino de sentenças tão bem construídas como: “D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte”? Talvez seja melhor não saber.

A atitude de “repaginar” a linguagem de um dos maiores escritores da língua portuguesa não foi vista com bons olhos pois, de certa forma, ela desconfiguraria a obra do Bruxo do Cosme Velho. Há um trecho em que a LDA fixa alguns pontos importantes, como o respeito à integridade da obra. Portanto, não se pode modificá-la a ponto de prejudicá-la, desfigura-la, de modo a atingir a honra e a reputação do autor da obra.

É pouco provável que a LDA tenha algo a ver com isso, mas, no fim, a autora voltou atrás em sua “grande ideia” e o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas pode continuar a descansar em paz, não apenas em seu lugar de repouso final, no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, mas também em nossas estantes e cabeceiras.

3. E o rato levou

O último caso é interessante por uma razão peculiar: ele esbarra nos impasses sobre a diferença de tempo para queda em domínio público em alguns países e qual a melhor maneira de resolvê-los. Em 2004, o Projeto Gutenberg, a mais antiga biblioteca virtual de que se tem notícias, recebeu uma notificação dos então nada felizes herdeiros da escritora americana Margaret Mitchell (1900-1949), autora de …E o Vento Levou.

O prazo de proteção na Austrália (país do Projeto Gutenberg) é de 50 anos. Seguindo esta estimativa, o livro de Mitchell, que inspirou o clássico filme de 1939, com Vivien Leigh e Clark Gable, havia caído em domínio público em 1999 – cinco anos antes de ser disponibilizado no acervo do site para leitura gratuita.

O entrave se deu porque nos Estados Unidos, o prazo de proteção se estende por 95 anos, o que faz com que livro de Mitchell só caia em domínio público por lá em 2031. Resultado: pouco tempo após a notificação, o site retirou a obra do ar. Inusitada também é a razão do prazo americano ser tão longo. Tudo por conta de um simpático ratinho.

Em 1998, foi aprovada pelo Congresso norte-americano uma lei que prorrogou por mais 20 anos o prazo para que os direitos autorais do Mickey Mouse, carro-chefe do grupo Disney que estava com seus dias de monopólio contados, caíssem em domínio público. Como consequência, todas as outras obras e autores que estavam à beira do domínio público se “beneficiaram” da decisão e ganharam mais um belo tempo na inexpugnável redoma dos herdeiros.

A discordância de prazos é geralmente motivo de dor de cabeça. Para resolver imbróglios do tipo, a Convenção de Berna aponta duas soluções possíveis: a primeira é a regra do tratamento nacional que opta por dar o mesmo tratamento para autores nacionais e estrangeiros, sem nenhuma discriminação; já a segunda é a regra do prazo mais curto, que diz que o prazo de proteção não deve exceder a duração fixada no país de origem da obra. No país do carnaval e futebol (quem dera ainda fosse desse último), o que vale é a primeira.

Na esteira da discussão mais que necessária sobre os obstáculos que alguns herdeiros representam ao acesso da sociedade às obras de cunho artístico, científico e literário, o domínio público se apresenta como um modo de evitar que um ciclo vicioso se perpetue.

Isto posto, e casos expostos, é possível depreender que mesmo com um problema aqui e outro acolá; com tantos casos inusitados e até um tanto absurdos, o domínio público permanece como uma ferramenta que facilita o acesso à cultura, que ultrapassa o individual em direção ao coletivo e é, portanto, mais que necessária.

* Publicado originalmente no JOTA.

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