Entre tapas e beijos: Direito, arte e ciência juntos contra a falsificação
Figura do falsificador ainda é envolta em uma perigosa névoa romântica
Por: Marco Antonio Lima Berberi, Jocê Rodrigues, Joyve Finato Pires
Entre 1874 e 1876, o médico e historiador de arte italiano Giovanni Morelli (1816-1891) publicou uma série de artigos, sob o pseudônimo de Ivan Lermolieff, na Zeitschriftfiir für bildende Kunst sobre uma técnica inovadora de identificar e atribuir autoria a obras não-assinadas de grandes mestres da pintura. O método “infalível” consistia na atenção a detalhes como os lóbulos das orelhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés e também as unhas. Pela correta análise de tais simples elementos, segundo ele, seria possível identificar um trabalho de Michelangelo ou Botticelli.
Em sua época, Morelli já afirmava que os museus estavam cheios de obras com autorias mal identificadas. Hoje, sabemos que não é apenas a questão da autoria, mas também de originalidade. Em 2015, Colette Loll, fundadora e diretora da Art Fraud Insights, afirmou que cerca de 40% das obras vendidas no mundo são na verdade falsificações. Cenário triste, mas que toma novas direções graças à interação entre arte, direito e ciência.
Antes, era comum que as perícias fossem feitas por um connoisseur que gozasse de grande respeito. Suas ferramentas de investigação se limitavam aos conhecimentos históricos e quase subjetivos. Com o avanço das técnicas de falsificação, apenas o olho nu há muito não é mais capaz de responder sozinho pela autenticação de obras. É preciso agora um esforço em conjunto de diversas áreas, na direção de uma expertise multidisciplinar que faz com que a responsabilidade não recaia mais sobre uma única pessoa.
Graças às novas circunstâncias, autenticar uma tela faz lembrar um episódio de CSI. A diferença está no fato de que o objetivo não é descobrir o assassino, mas o autor. Reflectografia com infravermelho, luz rasante, radiografia, mapas bidimensionais e raio x, tudo isso e mais um pouco faz parte de qualquer trabalho sério de peritagem. As orelhas e mãos do método morelliano ficaram para trás de vez.
O papel do conhecedor de arte ainda é essencial para uma perícia, assim como documentos que possam reconstruir ou dar pistas do trajeto da obra desde sua saída do ateliê do artista. Somente depois se junta a elas o exame técnico e científico, que por meio de procedimentos que lembram o trabalho de um detetive, pode contar a história daquele objeto e situá-lo corretamente em seu devido tempo e contexto.
Durante o simpósio Direito & Arte (15/08), organizado em parceria com a OAB-SP e a recém-criada Associação das Galerias de Arte do Brasil (AGAB), o perito em análise de obras de arte Douglas Quintale defendeu a ideia de que a mudança de paradigma veio com o escândalo que nocauteou a galeria Knoedler. Em 2004, ela era uma das mais antigas e mais respeitadas galerias de Nova Iorque e protagonizou o maior processo jurídico de falsificação quando vendeu um suposto Mark Rothko (1903-1970) por 8,3 milhões de dólares ao colecionador Domenico De Sole. Mais tarde, descobriu-se que mais de 40 obras falsas foram vendidas, fazendo o prejuízo de compradores chegar a 80 milhões de dólares.
Em entrevista ao The Art Law Podcast, Jamie Martin, cientista forense e atual diretor de pesquisa científica da Sotheby, reforça a posição de que este escândalo tenha desencadeado verdadeira mudança no paradigma indiciário. “O que se viu depois da Knoedler foi um aumento de investidores apoiando laboratórios de análise que ofereciam seus serviços para investidores de arte e grandes colecionadores”, disse. Há escarcéus que veem para o bem e em 2011, depois de mais de 165 anos de intensa atividade, a Knoedler fechava as portas. No entanto, como mostrou o julgamento do caso De Sole, em 2016, ainda pode ter muito coelho para sair deste mato.
A falsificação de arte é uma indústria e passa longe da visão romântica que algumas pessoas têm. Wolfgang Beltracchi é um exemplo vivo de como a figura do falsificador ainda é envolta em uma perigosa névoa romântica. Condenado em 2011 a seis anos de prisão por falsificar mais de 80 artistas diferentes e enganar centenas de comerciantes e compradores entre os anos de 1970 e 2010, lucrou muito e continua a tirar proveito dos delitos que cometeu.
Em suas falsificações, Beltracchi julgava ser quase um Pierre Menard, personagem de Jorge Luis Borges que acreditava ser capaz de escrever um novo e melhorado Quixote sem mudar uma letra ou vírgula do original de lugar. Beltracchi foi pego durante uma perícia de um quadro supostamente pintado por Heinrich Campendonk (1889-1957), traído por dois pigmentos (dióxido de titânio e ftalocianina) não utilizados originalmente na época de Campendonk.
Pequenos detalhes, detectados somente por meio da combinação entre conhecimento e tecnologia, foram suficientes para desencadear a queda de um dos maiores falsificadores contemporâneos.
Antes de Beltracchi, outro grande falsificador, talvez o maior de todos, foi o holandês Han van Meegeren (1889-1947). Mundialmente conhecido pelas falsificações que fazia do pintor holandês Johannes Vermeer (1632-1675), tinha tudo para escapar ileso não fosse o deslize de ter vendido uma de suas falsificações para Hermann Göring (1893-1946) durante o regime nazista. Resultado: Meegeren posteriormente foi acusado de colaborar com o nazismo e para se safar, precisou confessar e provar ser, na verdade, um falsificador.
Atualmente, quem ocupa os infames holofotes é Ken Perenyi, um artista reconhecidamente talentoso, e igualmente arrogante, que mesmo depois de descoberto não foi levado a julgamento. Para além disso, desenvolveu a incômoda mania de jactar-se de seus feitos enquanto vende livremente as falsificações que produziu sob a alegação de serem apenas cópias.
Mesmo com um cenário que inspire certa desconfiança, é importante dizer que galerias, museus e instituições similares são normalmente vítimas, não cúmplices. Elas também são enganadas, ludibriadas e induzidas ao erro. E o problema se agrava quando nossa legislação é tão falha que às vezes parece proteger o infrator – queixa bastante comum entre artistas e galeristas.
No âmbito legal, se faz urgente uma reforma que preveja as lesões, seguido da criação de um banco de dados integrado que concentre e facilite acesso a informações úteis e importantes para a prevenção de golpes de falsificadores. Uma empreitada de tal magnitude leva tempo para se concretizar e até lá, é certo que muitas pedras ainda vão rolar. Portanto, quanto maior a interação e colaboração entre saberes e instituições, melhor.
Tendo isso em mente, é um alívio saber que direito e arte, mesmo a trancos e barrancos, continuam dispostas a conversar, como bons amigos que brigam e discutem, mas que logo fazem as pazes. A união faz força, é o que dizem por aí.
Homicídio, casamento, divórcio, testamento, roubo, pena de morte, Constituição. Todos os temas relevantes para o trabalho dos operadores do Direito podem ser facilmente encontrados em tramas operísticas.
Basta ter olhos para ver, ouvidos para escutar e um novo mundo então se abre.
Assim como acontece em O Mercador de Veneza, O Nome da Rosa e as Ficções borgeanas, é possível encontrar complexas implicações morais e as controversas manifestações da natureza humana em obras como Aida, Das Rheingold, Madama Butterfly, Le Nozze di Figaro, Rigoletto, Il Barbiere di Siviglia e tantas outras. O que significa que partituras, libretos e melodias podem nos ajudar a reconhecer e compreender alguns dos vícios e virtudes também nos moldes de leitura da lei. Pode-se ainda comparar os contextos sociais e legais da época em que uma ópera foi escrita com as escolhas e soluções apresentadas pelo autor e traçar paralelos com a legislação atual, sempre com o devido cuidado para não incorrer em anacronismos..
Para alguns, talvez assuste o fato de que o cruzamento entre as linhas narrativas e interpretativas entre Direito e ópera se revele tema nóvel e desafiador, com muitas veredas a serem ainda descortinadas e exploradas. Um caminho a ser construído, passo a passo, metro a metro, nota a nota. No entanto, estas são barreiras que podem ser facilmente removidas por vontade, interesse e um certo toque de espírito desbravador.
Entre os interessados nessa relação mundo afora, alguns nomes ganham destaque. É o caso de Filippo Annunziata e Giorgio Fabio Colombo, organizadores do excelente e pioneiro Law and Opera (Springer, 2017)2. No livro, as bases do estudo de Direito e ópera estão divididas em três diferentes frentes: law in the opera, law on the opera e law around the opera. Dentro dessas três esferas estão desde os estudos sobre direitos autorais e de contratos de produção, até os temas jurídicos que predominam em alguns enredos.
Os recortes escolhidos pelos pesquisadores convidados (dentre eles o notável jurista brasileiro Marcílio Toscano Franca Filho) são abordados com categoria e elegância, sem fraquejar no aspecto técnico, tão caro e necessário ao sistema jurídico. A importância de tão ousado passo não pode ser ignorado e os devidos louros devem ser distribuídos. Não dá para deixar de notar a relevância da construção de uma nova ponte ou, para quem pende para a visão de Richard Posner, de uma nova e frágil passarela3 que ajuda a fazer travessia para área isolada.
Ainda que as correntes existentes no estudo entre Direito e literatura sejam inevitavelmente projetadas nas análises existentes entre Direito e ópera, é importante salientar que existem diferenças marcantes entre elas. Afinal, estamos a falar de experiências estéticas únicas, com todas as suas idiossincrasias e complexidades. Sem olvidar de que as primeiras pesquisas no primeiro campo já contam mais de um século, enquanto o segundo mal acaba de nascer.
Para escapar de eventuais armadilhas teóricas é preciso então ter atenção, discernimento e algum jogo de cintura. Não em forma de malandragem e desonestidade intelectual, mas na forma de verve e de capacidade de ligar pontos aparentemente distantes. A juíza norte-americana Ruth Bader Ginsburg é um bom exemplo disso.
Apaixonada por ópera desde os 11 anos de idade, há tempos ela vem contribuindo para fomentar um diálogo de alto nível entre as duas áreas. Dona de um repertório invejável, arquitetou uma forma inovadora de discutir o assunto ao levar músicos profissionais para apresentarem árias e duetos em suas palestras, a fim de ilustrar seus argumentos sobre a fecunda relação entre os universos jurídico e o lírico. Sua ligação com este último é tão forte que ela acabou por se tornar personagem de uma ópera cômica.
Escrita em 2013 por Derrick Wang, a obra intitulada Scalia/Ginsburg mostra de forma bem humorada e inteligente a longa amizade cultivada entre Ginsburg e o juiz Antonin Scalia (1936-2016)4, que integrava o lado oposto do espectro ideológico defendido pela juíza pop ― uma liberal de carteirinha e certidão. Pode-se dizer que a improvável relação entre eles foi costurada pelas linhas de partituras de grandes mestres, capazes de obnubilar qualquer diferença intelectual, política ou ideológica.
Enquanto floresce em países como Itália e Estados Unidos, a investigação da relação entre Direito e ópera resta quase inteiramente ignorada entre os pesquisadores brasileiros. Por aqui ela ainda carece de atenção e trato. Não ignoro, é claro, o fato de que algumas dificuldades se façam presentes para qualquer um que queira se embrenhar em ainda tão pouco iluminada vereda. Ainda mais em terras tupiniquins.
Uma delas, talvez a mais significativa, seja a ausência de locais onde se pode assistir apresentações do tipo. É muito mais fácil encontrar um teatro do que uma casa de ópera, por exemplo. Do mesmo modo, é inegavelmente mais fácil comprar um livro do que conseguir um bom libreto (mais barato também). As opções não são muitas, é verdade, mas, ainda assim, elas existem.
Mesmo com produções escassas, graças a cortes constantes no orçamento e a polêmicas que envolvem a gestão de espaços como o Theatro Municipal (São Paulo e Rio de Janeiro), não se pode cair no velho conto de que a ópera e, de modo mais geral, a música de concerto está morrendo. Ladainha que vem sendo cantada e noticiada desde o alvorecer do século XX5.
Além de certa tendência conservadora de se opor a novas ideias e de se resguardar dentro dos resistentes muros da tradição, Direito e ópera dividem outra característica em comum: as duas são difíceis de morrer.
Com tantos desafios e contratempos, fica a pergunta: é possível produzir estudos de qualidade que unam Direito e ópera nestes tristes trópicos? É cedo para dizer. Mas, na esperança de que a resposta para tão espinhosa questão venha futuramente a ser um retumbante “sim!”, aos corajosos e não acomodados pesquisadores, juristas e estudantes de Direito, fica o desafio.
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1 François Ost, Contar a Lei: As Fontes do Imaginário Jurídico (Unisinos, 2005). Visão muito bem explicada também por María José Falcón y Tella em seu livro Derecho y Literatura (Marcial Pons, 2015).
2 Giorgio Colombo também é autor de L’avvocato di Madama Butterfly (O barra O 2016), no qual analisa as relações entre o Direito em vigor nos Estados Unidos e o japonês através das problemáticas conjugais da ópera de Puccini.
3 Ao falar de Direito e Literatura, Posner, em Law and Literature: A Misunderstood Relation, enfatiza a necessidade de levar em consideração as diferenças entre as duas áreas, de modo a evitar certos equívocos de natureza apaixonada.
4 Scalia serviu de inspiração para a peça The Originalist, que teve sua estréia em 2015. Escrita por John Strand, a peça discute, entre outras coisas, a chamada abordagem originalista da Constituição, doutrina que encontrava em Scalia um de seus maiores defensores.
5 Alex Ross, Escuta Só: do Clássico ao Pop (Companhia das Letras, 2010).
* Publicado originalmente no JOTA.