Relacionamentos artificiais
A epidemia da solidão e a busca por prazeres no mundo virtual
Por: Jocê Rodrigues
Vivemos tempos cada vez mais interessantes. Não apenas no sentido que se evidencia à primeira vista, mas também naquele dado pelo provérbio chinês, que versa sobre a necessidade de turbulências e tribulações para a evolução do pensamento. Afinal, como diz um outro velho ditado, desta vez inglês: mar calmo nunca fez bom marinheiro.
A atual situação pandêmica serviu não apenas para chamar a atenção sobre questões sanitárias, mas também sobre o futuro das relações humanas. É quase impossível pensar em nossa vida sem o convívio diário com algum tipo de tecnologia que nos auxilie ou nos distraia, e junto com este avanço tecnológico, surge também uma espécie de solidão compartilhada. Em outras palavras, vivemos também uma epidemia de solidão.
O entrelaçamento entre orgânico e digital não acontecerá somente em forma de melhorias genéticas e questões de saúde (órgãos sintéticos, próteses, etc.). Ele já começa a se dar no âmbito afetivo, em número cada vez mais crescente.
Logo no início da pandemia, o Ministério da Saúde da Argentina recomendou a adoção do sexo virtual pela população, a fim de deter a onda de contágio. Uma postura que gerou certa polêmica entre os mais puritanos, mas que não se mostra como grande novidade quando pensamos na realidade em que vivemos. Somos cada vez mais impelidos a buscar prazeres no mundo virtual.
Além da perda voluntária da nossa intimidade, como já demonstrava a antropóloga argentina Paula Sibilia anos atrás, nossas relações afetivas passaram a ser mediadas por programas e computadores. Em Vida para Consumo (Zahar, 2007), Zygmunt Bauman fazia a comparação entre a vida exposta como mercadoria na grande prateleira do mundo virtual:
“Entrar na web para escolher/comprar um parceiro segue a mesma tendência mais ampla das compras pela internet. Cada vez mais pessoas preferem comprar em websites do que em lojas (…). O conforto espiritual obtido ao se substituir um vendedor pelo monitor é igualmente importante, se não mais”, escreveu o sociólogo polonês, antes mesmo da explosão de aplicativos de relacionamento.
Para Bauman, muitas pessoas acabam por escolher este tipo de contato mediado por ser mais seguro e cômodo: “um encontro face a face exige o tipo de habilidade social que pode inexistir ou se mostrar inadequado em certas pessoas, e um diálogo sempre significa se expor ao desconhecido: é como se tornar refém do destino. É tão mais confortável saber que é a minha mão, só ela, que segura o mouse e o meu dedo, apenas ele, que repousa sobre o botão.”
Se o que caracterizava a sociedade líquido-moderna analisada por Bauman era o uso constante e intermitente de intermediários cibernéticos nas relações humanas, estamos hoje indo em direção a uma modernidade gasosa, na qual transformamos os intermediários em desejo final. Ou seja, estamos eliminando a outra parte humana deste elo.
Uma pesquisa feita pela We Vibe, empresa canadense especializada em vendas de produtos eróticos pela internet, revelou que 14% dos 1.000 homens entrevistados disseram se sentir atraídos pela voz da assistente virtual da Amazon, Alexa. Parece um número pequeno, mas bastante relevante.
Uma recente matéria publicada no Wall Street Journal trouxe a história de Michael Arcadia, um homem de 50 anos que se apaixonou por um chatbot desenvolvido para replicar a cognição humana e para responder perguntas de seus usuários. Segundo a reportagem, levou apenas uma semana para que Michael se visse entregue aos encantos da sua companhia virtual.
Na medida em que a inteligência artificial for se tornando mais autônoma e nossa solidão mais incontornável, cenas iguais àquelas vistas em filmes como o introspectivo Her (Spike Jonze, 2013) e o cômico Jexi (Jon Lucas e Scott Moore, 2020) se tornarão ainda mais comuns. E a coisa pode ir ainda mais longe.
Segundo David Levy, especialista em pesquisas sobre inteligência artificial e autor de Love and Sex with Robots, não vai demorar muito para que casamento entre seres humanos e máquinas sejam autorizados e tenham validade legal. Na verdade, ele é bem otimista e estima que a primeira cerimônia oficial deve ocorrer antes de 2050.
Do jeito que as coisas andam, não tardará para que o Direito seja chamado a resolver querelas afetivas entre pessoas e máquinas, incluindo casamentos, divórcios, contratos de namoro, pactos nupciais e por aí vai.
Diante deste possível cenário, será preciso toda uma reestruturação legal. Uma que talvez nos aproxime mais das máquinas e que nos distancie mais uns dos outros; ou que nos abra possibilidades para ressignificação do que é de fato ser humano.
* Publicado originalmente no JOTA.