Voando Alto: as lições de Saint-Exupéry para o século XXI

Em uma época de tantas dificuldades e desafios, o que podemos aprender para além das ideias imortalizadas em O Pequeno Príncipe?

Por: Jocê Rodrigues

Existem autores que usam a escrita para voar, para cortar o céu do impossível em voos de imaginação ousados e desbravadores. Tarefa que por si só é capaz de trazer prazer e satisfação para muitos. No entanto, a sensação abstrata de planar entre nuvens de devaneios e pensamentos não era o suficiente para Antoine de Saint-Exupéry (1900–1944). Muito antes de O Pequeno Príncipe, publicado apenas um ano antes da sua morte, ele já era um escritor de enorme renome e sucesso. O principal tema da sua literatura era a aviação, paixão que não ficou apenas no campo das ideias e que o levou a se tornar piloto profissional e um dos responsáveis pela implantação de rotas de correio aéreo na África, América do Sul e Atlântico Sul.

Livros como Correio do Sul (1929), O Aviador, Piloto de Guerra (1942) e Terra dos Homens (1939) falam de coragem, irmandade e comprometimento, elementos cada vez mais necessários nestes tempos sombrios de pandemia e tensão política mundial. Dono de uma escrita profunda e reflexiva, o francês de nome complicado ainda hoje consegue falar diretamente ao coração dos leitores, que embarcam com ele em perigosas travessias sob céus de noites estreladas ou tempestuosas.

Seus personagens trazem em si toda a complexidade da natureza humana. Hora éticos e comprometidos, hora mesquinhos e duros, eles mostram as diversas facetas do ser humano, sempre com o toque característico de um autor cuidadoso e sensível. Em Voo Noturno (1931), por exemplo, é possível notar acentuadamente tais matizes de temperamento. O livro narra a história de uma companhia de correio aéreo que precisa vencer as intempéries do tempo para levar mensagens em segurança até o destino delas. Para isso, seus pilotos precisam de fibra e de boa dose de coragem e comprometimento.

O livro traz trechos belíssimos, cuidadosamente talhados na superfície do papel, como este:

“E agora, no coração da noite, como um vigia, Fabien descobre que a noite mostra o homem: aqueles apelos, aquelas luzes, aquela inquietação. Esta simples estrela na escuridão: o isolamento duma casa. Uma estrela que se apaga: é um lar que se fecha no seu amor. Ou no seu tédio. É uma casa que cessa de acenar ao resto do mundo. Os camponeses, sentados à mesa junto do candeeiro, mal sabem o que desejam: ignoram que, na imensa noite que os contém, o seu desejo tem um tão grande alcance. Mas, vindo de mil quilômetros de distância, Fabien descobre esse alcance e sente que vagas profundas fazem subir e descer o avião que respira, após ter atravessado dez tempestades, como países em guerra, separados por clareiras de luar, ao atingir, uma a uma, embebido num sentimento de vitória, aquelas luzes. Os camponeses creem que a luz do seu lampião ilumina apenas a mesa humilde, mas a oitenta quilômetros de distância, alguém já distinguiu o apelo dessa luz, como se aqueles homens a balouçassem, desesperados, numa ilha deserta, em frente do mar”.

A partir daí, fica claro o motivo de seu autor ter sido celebrado em vida como um dos maiores escritores do seu tempo.

Aventureiro por natureza

Saint-Exupéry, Saint-Ex para os colegas de voo, ou Zeperri para os moradores locais de Florianópolis, com quem conviveu por curto período, Antoine nasceu em família abastada (era filho de um conde e de uma condessa) e começou carreira na aviação com apenas 21 anos, quando foi admitido como piloto no Segundo Regimento de Estrasburgo. Apaixonado pela emoção e pela possibilidade de superar a si mesmo em suas aventuras, bateu recordes de velocidade no ar e viveu de maneira veloz também quando estava com os pés plantados no chão.

Em 1931 ele se casou com a salvadorenha Consuelo, e já nessa época demonstrava não conhecer limites. Os dois viviam uma vida conturbada, pois ambos constantemente se aventuravam em casos extraconjugais, que acabavam por gerar um clima de tensão e hostilidade entre o casal. Além disso, havia o fator financeiro, que quase nunca ia bem graças aos exageros da vida nababesca vivida pelo escritor. Entre as suas extravagâncias estavam uma Bugatti e um avião particular, além de um forte gosto por cigarros caros, que chegavam a custar o equivalente ao salário que ganhava como relações públicas da Air France.

Para tentar vencer as dificuldades financeiras causadas pelo hábito de gastador inveterado, Exupéry dava seus pulos também como inventor. Em 1934 patenteou seu primeiro sistema de aterrissagem ― até 1940, outras 13 patentes viriam. Mas a coisa não para por aí. Até o fim da sua breve vida, se meteu em projetos que envolviam a propulsão de foguetes, assunto que lhe interessava particularmente.

Como dá para notar, não se tratava apenas de mais um escritor perseguindo a fama e o dinheiro apenas pelas vias convencionais. Sua mente voava alto demais para permanecer apenas no campo literário e da abstração. Ele queria colocar a mão na massa, sentir e tocar o mundo com os próprios dedos. Moldar a realidade com a força da sua vontade, manifestada por meio de ações concretas e significativas. Força de vontade e tenacidade eram duas das qualidades que facilmente se destacavam em sua personalidade. Em 1935 Saint-Exupéry, acompanhado do navegador André Prévot, sofreu um acidente aéreo enquanto participava de uma corrida com trajeto entre França e Vietnã. O avião em que estavam caiu no meio do deserto do Saara e os dois, que escaparam sem ferimentos graves, passaram quatro dias de angústia até serem finalmente resgatados.

Sem medo de encarar o destino de frente, fosse ele qual fosse, Saint-Ex se alistou para atuar na Segunda Guerra Mundial. Quando seu país foi invadido pelos nazistas, foi obrigado a se exilar nos Estados Unidos, onde foi recebido pelo cineasta Jean Renoir, filho do pintor impressionista Auguste Renoir, e lá ficou por mais de dois anos. Foi também neste período que escreveu e publicou seu best-seller mundial O Pequeno Príncipe (1943).

Fim prematuro

O fim da vida de Antoine Saint-Exupéry mais parece com a passagem de um livro que ele mesmo teria escrito.

Ao fazer uma missão de reconhecimento em julho de 1944, seu avião simplesmente desapareceu depois de decolar da ilha da Córsega. Durante muito tempo, o desaparecimento do Lockheed Lightning P-38 que pilotava permaneceria um mistério, até que, em 1998, um pescador encontrou uma pulseira prateada com o nome do autor. A descoberta levantou dúvidas sobre a veracidade da história, mas foi o suficiente para chamar a atenção de Luc Vanrell, arqueólogo marinho que encontrou os destroços do avião do piloto escritor perto de Marselha, em 2004.

Vanrell trabalhou em conjunto com Lino von Gartzen, que aprofundou as buscas até chegar a Horst Rippert, ex-piloto alemão que afirmou ter sido o responsável pela morte de Saint-Exupéry com o seu avião modelo Masserschmidt ME-109. Rippert guardou este segredo por longos 64 anos, pois não queria ser responsável pela morte do autor de livros que o haviam feito se apaixonar pela aviação. “Na nossa juventude, todos lemos e adorávamos os seus livros”, disse em entrevista para o livro Saint-Exupéry, l’ultime secret: Enquête sur une disparition (Editions du Rocher, 2008), escrito por Vanrell e outros colaboradores. “A sua obra despertou a vocação de voar em muitos de nós. Se soubesse quem era, jamais teria disparado”, lamentou Rippert.

Embora o corpo não tenha sido encontrado, a história do abatimento por um soldado nazista é a mais plausível e a mais aceita até o momento.

Grandes lições para além de um pequeno livro

Quando “O Pequeno Príncipe” foi publicado, o clima não era dos melhores. As tropas aliadas desembarcavam na Sicília e trariam a guerra até o continente europeu na tentativa de enfraquecer a colaboração entre Itália e Alemanha; Japão e Estados Unidos se enfrentaram nas Ilhas Salomão; Roma foi bombardeada; mais e mais pessoas morriam dentro e fora da linha de frente.

Mesmo assim, Saint-Exupéry continuava a acreditar no ser humano. Mesmo quando se desiludiu diante de tantas atrocidades, continuou a apostar todas as suas fichas nas virtudes humanas, sem nunca ignorar as suas fraquezas e deslizes. Para ele, era mais válido acreditar no esforço para a realização de algo bom do que na tendência desastrosa de um ato ruim. Para ele, ainda que coisas terríveis aconteçam, como a própria guerra, por exemplo, seria possível encontrar luz no fim do túnel graças ao esforço de homens e mulheres que não se deixam levar pela escuridão. Uma lição valiosa que pode ser encontrada muito antes da história sobre um pequeno príncipe longe de seu planeta e de um aviador perdido no deserto. Os fanáticos que me perdoem, mas reduzir toda a qualidade da obra literária de autor tão grande e contundente a apenas um livro infantojuvenil é um grande desperdício.

Honra, responsabilidade e fraternidade eram princípios que abundavam em seus romances, crônicas e contos. Para os mais céticos, tal postura pode parecer ingenuidade. No entanto, era uma declaração de amor baseada no que vivia com seus amigos e com a função que exercia na profissão. “Tenho horror da literatura pela literatura”, disse certa vez em uma entrevista. “Por ter vivido ardentemente, pude escrever fatos concretos. Foi meu ofício que determinou meu dever de escritor.”

Suas obras trazem reflexões profundas sobre a natureza humana, solidariedade e senso de dever. “Não sei qual é o valor exato da vida humana, nem da justiça, nem do desgosto. Não sei exatamente quanto vale a alegria de um homem. Nem uma mão que treme. Nem a piedade, nem a doçura”, medita Rivière, um dos personagens mais complexos de Voo Noturno.

* Publicado originalmente no Jornal Cândido.

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