Vandalismo disfarçado de humor
A Lei de Direitos Autorais e a proteção da integridade da obra de arte
Por: Jocê Rodrigues
Recentemente, o caso do influencer que vandalizou uma obra de arte que estava pendurada na parede do quarto de um hotel ganhou destaque em alguns veículos do país.
A atitude levantou questionamentos sobre direitos autorais e avivou mais uma vez a já acirrada discussão sobre o que é o que não é uma obra de arte. Um episódio triste, que serve como alerta para aqueles que acreditam que vale tudo pelo entretenimento.
Durante sua passagem por um hotel em Aracaju, o humorista Carlinhos Maia decidiu rabiscar um dos quadros expostos no local, com o pretexto de fazer uma “melhoria”, pois disse que o achava sem graça. O momento foi exibido em um vídeo que ele postou numa rede social.
A “brincadeira” não caiu bem e críticas severas logo começaram a surgir. Em contrapartida, muitas também foram as declarações de apoio à atitude de Maia, que logo tratou de tentar amenizar a repercussão negativa.
A justificativa dada por ele foi de que a dona da obra, também proprietária do hotel, permitiu que ele rabiscasse o quadro. No entanto, é preciso ficar claro o fato de que quem permitiu a alteração do quadro foi a pessoa que comprou a obra, não a artista que a criou.
A ideia de que uma obra de arte pode ser possuída por inteiro e que o comprador pode fazer o que bem entender com ela é ainda muito comum. Para a infelicidade de Carlinhos Maia, as coisas não funcionam assim e muita água passa por debaixo dessa ponte.
A Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98), embora careça de acertos e revisões em alguns pontos, é certeira em pontos como este. O artigo 37, por exemplo, expressa claramente que “a aquisição do original de uma obra, ou de exemplar, não confere ao adquirente qualquer dos direitos patrimoniais do autor”.
Everilda Brandão, em seu excelente livro A Tutela das Multititularidades (Lumen Juris, 2018), explica: “Quando se tratar de um bem particular, este bem passa a ter, então, dois valores: um econômico, passível de apropriação, e outro não econômico, que impossibilita o pertencimento exclusivo”.
O artigo 29 da mesma lei é bastante claro em relação à necessidade de autorização prévia e expressa do criador para qualquer alteração, edição e qualquer outra qualidade de modificação..
Possuir uma obra de arte não outorga o direito de modificar, vandalizar ou destruir (salvo estipulado em contrário com o próprio criador).
Portanto, não cabe a justificativa dada pelo humorista de que a simples autorização da dona do estabelecimento seria suficiente para permitir que ele fizesse qualquer intervenção no quadro. Atos desse tipo são ofensas diretas à honra e reputação do artista e constitui crime.
Enquanto algumas pessoas insistem em ver o ato de Maia como uma performance ou como forma de expressão, o mesmo poderia ser interpretado como punível e colocado lado a lado de crimes como o tráfico e a falsificação de obras de arte.
O tema é bastante complexo e exige reflexões que não caberiam em um só artigo. São poucos os estudos sérios feitos no Brasil sobre crimes de arte. Uma lacuna que precisa ser preenchida se quisermos evitar que acontecimentos como esse sejam vistos como um fenômeno comum ou sem importância.
No momento, o que precisa ficar claro é que não é preciso ser famoso, rico ou reconhecido para ter seus direitos protegidos pela lei. Não é porque a artista em questão não é um Leonardo da Vinci ou uma Anita Malfatti que sua obra pode ser desrespeitada e agredida da forma como foi. Ela merece a mesma proteção legalmente oferecida para qualquer grande mestre, do passado ou do presente, ainda que não valha milhões.
Mesmo que a criadora da obra discutida não possua a mesma relevância no mercado de arte que nomes como Jeff Koons ou Mark Rothko, ela produziu algo, materializou uma “criação do espírito” e por isso está amparada pelos mesmos dispositivos dos direitos autorais que qualquer outro.
Não é questão de nome. É questão de justiça e de respeito.
* Publicado originalmente no JOTA.