Um Filho Pródigo

A morte, o corpo e a sexualidade são elementos fundamentais da obra do japonês Yukio Mishima, uma das vozes mais instigantes e complexas da literatura da segunda metade do século XX

Por: Jocê Rodrigues

Mishima. Não fosse o capricho do destino e as rasteiras que a vida dá, esse teria sido o nome do meu primeiro filho. Os traços orientais viriam da mãe dele, que tem ascendência nipônica. Os olhos puxados, o sorriso enigmático e as expressões marcantes viriam dela, não de mim. Isso se a genética não pregasse a peça de dar a ele minha cabeça grande e meus olhos equestres.

A inspiração para essa escolha pouco usual foi a vida e obra de Yukio Mishima, pseudônimo usado pelo escritor japonês Kimitake Hiraoka (1925–1970). Seu pseudônimo foi pensado a partir da união das palavras yukio (neve) e Mishima (pacata cidade próxima ao Monte Fuji). Uma escolha perfeita, diga-se de passagem. A personalidade de Mishima era uma fina mistura entre a pureza da neve e a iminente violência de um vulcão adormecido.

A publicação de seu primeiro romance, intitulado Confissões de Uma Máscara (1949), causou certo choque pela linguagem e por pintar paisagens internas que poucos até então tiveram coragem de dar vida. Considerado por muitos como uma obra autobiográfica, o livro traz memórias cruas e desconcertantes de seu protagonista, que fala com desembaraço sobre as descobertas do corpo e da sexualidade, um dos temas recorrentes da literatura mishimiana. Além dela, a morte é também assunto fundamental em suas elucubrações. Um gosto que possivelmente herdou de Yasunari Kawabata (1899–1972), seu mentor e um dos grandes nomes da literatura japonesa de todos os tempos ― vencedor do Nobel de literatura em 1968.

Antes mesmo de ser publicado, Mishima já demonstrava grande e sincero interesse pela estética literária e pensava seriamente em como poderia contribuir para adensar o diálogo entre tradição e vanguarda. Em carta endereçada a Kawabata, datada de 1945, ou seja, anos antes de ser publicado, ele escreveu:

“Embora sejam muitas as ocasiões em que penso sobre o verdadeiro significado da novidade na literatura, creio que o sentido da novidade não se restringe apenas a imbuir nas letras o ardor da consciência dos tempos atuais, mas devendo possuir também, naturalmente, o sentido de cantar este instante sem sentido que é o presente vertiginoso com a frouxidão de uma pessoa demente, e creio ser possível pensar em uma novidade que ultrapasse o grau de antiguidade ou de inovação dos conceitos de até então sobre palavras, texto, estilo e todos os demais aspectos da arte (ou seja, que ultrapasse a postura de assumir como único padrão a distinção entre o que é velho e o que é novo, o que já existia e o que não existia).”

Mais do que pensar sobre isso, o autor desta e de outras cartas tocantes e cheias de insights enviadas ao amigo e mestre (a editora Estação Liberdade publicou a correspondência entre Mishima e Kawabata no Brasil), o jovem aspirante deu um jeito de colocar a mão na massa e modelar com o toque dos próprios dedos os seus trabalhos, acrescentando novas formas e jeitos de desenhar cenários internos e externos. A escrita de Mishima chega quase a ser uma experiência barroca. Barroco como pensado por Severo Sarduy no famoso ensaio Barroco y Neobarroco, no qual configura a estética barroca como um espaço de superabundância e de desperdício. “Contrariamente à linguagem comunicativa, econômica, austera, reduzida à sua funcionalidade ― servir de veículo para uma informação ―, a linguagem barroca se satisfaz no suplemento, no exagero e na perda parcial do seu objeto”, escreveu o crítico e escritor cubano.

Ler livros como Cores ProibidasO Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar e a tetralogia Mar de Fertilidade é se embrenhar em um jardim de metáforas e hipérboles que se misturam a aromas e sabores contraditórios. Em tudo há uma certa beleza decadente, sempre rodeada pelo espectro implacável da finitude. Os dilemas morais complexos de seus personagens são sempre adornados com traços finos, suaves e delicados. Beleza e feiura, vida e morte, dor e prazer. Tudo se mistura em uma linguagem barrocamente erótica, de exagero, de desperdício.

Vida Instagramável

Defensor ferrenho da tradição japonesa frente à ocidentalização do mundo, Yukio Mishima era também um cosmopolita antenado a tudo o que acontecia no mundo, principalmente nas artes e na literatura. Seus livros tratavam de temas polêmicos como morte, masoquismo e homossexualidade. Além disso, sua vida mais parece ter sido uma grande obra teatral. Exibicionista de carteirinha, o autor indicado três vezes ao Nobel usava de todos os meios para se destacar na multidão. Muito parecido com o que a maioria das pessoas faz hoje na terra quase prometida da internet e das redes sociais, com poses, biquinhos e coreografias.

Ser notado. Durante um bom tempo esta foi uma das grandes preocupações da sua vida. Precisava viver. Não só isso. Mas viver de muitas maneiras, tantas quantas fossem possíveis para uma pessoa. Tendo isso em mente, se lançou também como autor de teatro e de televisão. Seu corpo era o seu cartão de visita e seguindo a tradição clássica que tanto admirava, precisaria transformá-lo em um cartão de visita de impacto.

No documentário The Strange Case of Yukio Mishima, de 1985, a atriz e amiga Akihiro Maruyama conta que logo que se conheceram o achou feio e um tanto magro, mal sabendo que esta era uma das poucas fraquezas capazes de fazer cair o gigante ego do escritor que já era uma celebridade. “Certa vez, estávamos dançando juntos em uma boate gay em Shinjuku”, lembrou Akihiro, “e eu disse para ele em tom de brincadeira: onde você está? Eu não consigo te encontrar, você é tão pequeno”. Comentário que foi suficiente para mexer numa ferida profunda e que o ofendeu a ponto de fazê-lo bater em retirada sem nenhum comentário ácido ou jocoso, como de costume. Um episódio que marcou o seu início como fisiculturista dedicado. “Dali até a sua morte, ele compreendeu a desgraça que um corpo feio pode trazer para o seu dono”, foi a conclusão a que chegou a amiga e ex-amante.

Sua dedicação foi total. Tornou-se parte do cotidiano, de uma ideia de existência que necessitava não apenas de uma mente forte, mas também de um corpo sólido, capaz de suportar as intempéries da passagem do tempo o máximo possível. O seu projeto físico foi mais que apenas isso. Era um ensaio para o seu fim. Para o fim que achava mais digno e urgente. Com isso em mente, preparou uma série de ensaios onde mostrava ao seu público o templo que havia construído. Neles estão as partes da sua personalidade: o samurai, o guerreiro, o homem forte. Eram peças de publicidade não apenas do autor, mas também de suas ideias políticas e filosóficas.

 

Em 1965 Mishima escreveu, dirigiu e atuou em um pequeno filme chamado The Rite of Love and Death, no qual mostra os mínimos detalhes de um seppuku, o suicídio ritual ligado à tradição samurai tão admirada e defendida pelo autor. Um prelúdio poético e sombrio do que viria a acontecer anos depois.

Mais do que uma mensagem, a dedicação ao corpo era um ato. Palavras apenas não bastam. Sejam ditas pela boca ou escritas e publicadas num papel. Segundo Mishima, antes de mais nada, era necessário ser um homem de ação.

Um Rio de Ação

Apesar de ter crescido embebido da cultura do Ocidente, com uma formação literária que incluía autores como Christian Andersen, George Bernard Shaw e Oscar Wilde, Yukio Mishima fazia questão de levantar a bandeira do seu país em qualquer coisa que fizesse. Era preciso mostrar a sua força, não apenas sua delicadeza, já tão conhecida e apreciada pelo público ocidental.

Não lhe agradava, por exemplo, que a cultura japonesa fosse representada apenas pelos seus arranjos florais ou mostrada somente como uma cultura de paz e de amor plácido e paciente. Ele acreditava muito mais na mentalidade guerreira e resistente por trás da figura do samurai, que estava cada vez mais sendo esquecida e relegada em favor de uma entrada do pensamento e do comportamento importado de outros lugares do planeta e que começava a eclipsar o brilho próprio da terra do sol nascente.

Um dos seus credos mais ferrenhos nos últimos anos de vida foi o de que, para o fortalecimento do espírito nacional japonês, era necessário resgatar a crença na divindade do imperador. Uma ideia romântica, vista com ironia pela população, mas levada muito a sério pelo escritor, que reuniu uma guarda pessoal, tatenokai (sociedade do escudo), que buscava a proteção dos ideais mais puros do Japão.

Em 25 de novembro de 1970, Yukio Mishima, acompanhado de seus “oficiais”, saiu para encerrar a sua história. A partir daqui, os acontecimentos são mais que conhecidos: a tomada do quartel general; a tentativa fracassada de convocar a população para lutar contra as forças da ocidentalização do país e, por fim, a dramática morte por seppuku que atraiu olhares dos quatro cantos do mundo e que o eternizaram como o último homem a cometer o suicídio ritual samurai no país até aquele momento.

Antes de sair de casa naquele dia, deixou em cima da mesa a última página do último volume do monumental Mar de Fertilidade (composto pelos livros Neve de PrimaveraCavalos SelvagensO Templo da Aurora A Queda do Anjo) e uma carta à esposa com a seguinte frase: “A vida humana é limitada. Mas eu quero viver para sempre”.

Sua trágica trajetória foi contada e recontada de muitas formas através dos anos. Uma das mais interessantes foi por meio do filme Mishima: Uma Vida em Quatro Tempos, dirigido por Paul Schrader e produzido por ninguém menos que Francis Ford Coppola e George Lucas.

Ainda hoje, com todas as controvérsias e com todas as reviravoltas de um histórico pessoal repleto de acontecimentos quase inacreditáveis, ler e reler Yukio Mishima é se aproximar das virtudes, falhas e vicissitudes do ser humano. Acima disso, ler Mishima, para mim, é ter a experiência de (re)encontrar o filho de olhos rasgados e de temperamento difícil que os desmandos da vida não me permitiram conhecer.

* Publicado originalmente no Jornal Cândido.

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