Da cozinha ao tribunal: gastronomia é rota mal explorada em Direitos Autorais?
É irônico que ainda exista tanta resistência e dificuldade em assegurar as criações dos profissionais
Por: Jocê Rodrigues
Já se foi o tempo em que a palavra culinária era sinônimo apenas de preparar ou confeccionar alimentos. Ela evoluiu a ponto de integrar um rol bem distinto da simples necessidade humana de se alimentar e adentrou, merecidamente, os discursos históricos e estéticos. Experimentar um prato da chamada Haute Cuisine pode ser uma vivência singular, comparada a estar diante de uma pintura de Renoir ou de ouvir uma sinfonia de Mahler. A diferença é o sentido a ser usado: no lugar da visão ou audição, o paladar.
Imaginação e criatividade são elementos que fizeram com que o ato de se alimentar passasse para outro nível de experiência. Não mais apenas necessária e indispensável para a sobrevivência, mas agora também como um momento elevado de prazeres estéticos e intelectuais, carregado de tantos valores culturais e sociais que o levam à iminente necessidade de proteção jurídica, assim como acontece com a literatura, com a música, as artes plásticas e afins.
Ao contrário do que comumente se espera, Gastronomia e Direito possuem alguns pontos de contato interessantes. Em entrevista ao canal Dikart, o professor e pós-doutor em Direito Marcílio Franca Filho traçou paralelos entre os dois. “A gastronomia é tão conservadora quanto o direito”, disse. “Se você chega em determinada audiência e mostra um prato muito inovador, vai causar espanto. O direito também tem esses ritmos, esses tempos”. Também chamou a atenção para o fato de que o Direito também segue receitas, como os códigos e os ritmos processuais.
O magistrado e político francês Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826) era um apaixonado pelos prazeres da mesa e levava essa paixão lado a lado com seu fazer jurídico. “A descoberta de um novo prato traz mais felicidade para o gênero humano do que a descoberta de uma estrela”, escreveu certa vez. Afirmação que pode parecer um pouco exagerada, é verdade, mas que tem seu valor.
Atualmente, cozinha e tribunal não parecem mais locais tão distintos como se poderia imaginar. Os dois espaços se aproximam cada vez mais no discurso jurídico, guiados principalmente pelos caminhos do Direito Autoral, regulado pela Lei n° 9.610/98. Porém, nem tudo são flores.
Mesmo com o boom da cozinha molecular na década de 90, com restaurantes estrelados fazendo história, a exemplo do espanhol El Buli e do inglês The Fat Duck, muito pouco se falou, e ainda pouco se fala, sobre a proteção das criações culinárias que quebraram e continuam a quebrar paradigmas. Quem pode negar que as intervenções moleculares, pensadas por Ferran Adriá ou Heston Blumenthal, não possuem a carga de originalidade necessária para que adentrem de corpo inteiro nos cercos da propriedade intelectual? Aliás, o próprio Adriá, que foi pioneiro em transformar a cozinha em laboratório, já declarou que não tinha dúvidas de que “a arte pode existir na gastronomia, tanto no fenômeno da criação quanto no da percepção de quem recebe o produto”.
Na culinária, a autoria tem papel de grande relevância. O estudo feito pelo professor espanhol e doutor em Direito Santiago Robert Guillén, intitulado Alta cocina y derecho de autor (2017), tornou-se, não à toa, um trabalho seminal nessa discussão. Ele pesquisou o assunto à fundo e acompanhou de perto a rotina de chefs como os irmãos Roca, donos do restaurante duas vezes agraciado com o posto de melhor restaurante do mundo, El Celler de Can Roca. Logo de início, Guillén nos rememora a força que a etimologia da palavra gastronomia tem: uma junção das palavras gaster (estômago) e nómos (lei). As leis do estômago, por assim dizer. Combinação que por si só deveria ser capaz de despertar interesse nos juristas e futuros juristas mais curiosos.
Para Guillén, é notória e inegável a importância que o público dá para a relação autor e sua obra gastronômica. Alguém que vai ao D.O.M., por exemplo, certamente espera saborear um dos pratos criados por Alex Atala. Mesmo que o pedido seja preparado por outros funcionários, é importante que o prato seja aquele pensado e pesquisado pelo renomado e laureado chef.
“Que o público relacione as obras culinárias com seus autores destaca o vínculo notório que existe entre criador e sua obra e a importância que tem para o destinatário que busca pela obra culinária de determinado autor. Isto chama a atenção para a necessidade de proteger este vínculo entre autores e suas obras culinárias”, escreveu Guillén. “Negar que um chef é autor de um prato que fez seu nome e lhe rendeu fama pode ser considerado como uma ofensa grave à sua personalidade. O vínculo entre o autor e sua obra deve ser respeitado, e a Arte culinária não é uma exceção”.
É curioso que um dos primeiros casos de “proteção intelectual” de que se tem notícia remonta a 510 a.C. e tinha como objeto de proteção justamente a obra culinária. A lei da antiga colônia grega de Síbaris ordenava que se um cozinheiro criasse um prato original, não era permitido que qualquer outra pessoa reproduzisse sua receita pelo período de um ano.
O problema é que atualmente não dá para proteger uma receita, pois esta é vista apenas como uma mera listagem de ingredientes. Uma dificuldade que se apresenta não apenas no sistema jurídico brasileiro, mas de quase todo o mundo. É sabido que Auguste Escoffier (1846-1935), responsável pela primeira grande revolução gastronômica, já em sua época se lamentava pela lacuna legal que deixava cozinheiros à própria sorte contra o plágio.
Em 1995, um caso famoso avivou debate sobre o assunto quando a Meredith Corp. acusou a Publications International, Limited de ter publicado as receitas de um livro do qual a Meredith Corp. havia comprado os direitos em 1988, sem conceder o devido crédito. As duas empresas trabalham com a publicação de revistas e livros de receitas. Por considerar que se tratava apenas da reprodução de uma lista de ingredientes, sem traços que identificassem qualquer originalidade, a instância americana responsável decidiu que não houve nenhum tipo infringimento de direitos autorais. A decisão levantou questões importantes sobre os aspectos da originalidade em receitas que possibilitariam a defesa jurídica das mesmas caso os ingredientes estejam apresentados com criatividade – embora ainda não se saiba muito bem o que isso quer dizer. Seja como for, o fato é que a inserção da gastronomia como campo a ser defendido de modo eficaz pelo direito ainda não se concretizou por completo.
O caminho aberto por Paul Bocuse (1926-2018) no século passado foi trilhado e alargado por outras grandes personalidades. Hodiernamente, Chefs de cozinha estão entre as pessoas mais influentes do mundo. Pessoas que atingiram tais postos precisamente por conta da originalidade e criatividade de suas obras.
O que nos leva à conclusão de que, em um mundo onde competições culinárias atraem milhões de pessoas para a frente da televisão e movimenta a economia, é irônico que ainda exista tanta resistência e dificuldade em assegurar as criações do espírito destes profissionais.
* Publicado originalmente no JOTA.