Freud e o paradigma indiciário moreliano: ensaio sobre psicanálise e avaliação de obras de arte

Por: Jocê Rodrigues

Introdução

A psicanálise não apenas influenciou grande parcela do conhecimento posterior à sua criação, mas foi antes também profundamente influenciada por outros saberes, incluindo, mesmo que de modo indireto, a arte. Além da psicanálise, o final do século XIX trouxe consigo a emergência de um novo modelo epistemológico, amplamente desenvolvido e aplicado pelo médico, historiador e político italiano Giovanni Morelli na atribuição e análise de obras de arte. Seu método consistia em analisar traços muito específicos de uma obra, detalhes que geralmente eram negligenciados pelos connoisseurs: Lóbulos das orelhas, unhas, dedos das mãos e dos pés etc. Estes traços, para Morelli, estavam intimamente ligados à psicologia do artista e eram fruto de pequenos gestos do inconsciente e não apenas à técnica, propriamente dita[1].

Por ser fruto do espírito humano, toda obra de arte carrega traços característicos da nossa psique[2]. O trabalho do psicanalista e o trabalho do perito em avaliação de obras de arte partem do mesmo princípio: encontrar pistas que levem a uma resposta. Curiosamente, Sigmund Freud era conhecedor do método moreliano e foi intelectualmente influenciado por ele em sua fase pré-psicanalítica.[3]

Através de uma pesquisa de caráter multidisciplinar, o presente texto pretende demonstrar as proximidades entre duas práticas que estão aparentemente muito distantes uma da outra, mas que na realidade são quase aparentadas. Ao apresentar similaridades entre as práticas da peritagem de obras de arte e da psicanálise, intenta-se demonstrar como as inovações trazidas por Morelli desempenharam importante papel no desenvolvimento da psicanálise, com base não só nos comentários do próprio Freud, mas também na prática da análise de obras de arte, como era feita antes e atualmente.

Influências Duradouras

Muito se fala sobre a força que a psicanálise exerceu sobre diversas áreas do conhecimento humano, incluindo a arte, a antropologia e, em especial, a arqueologia, que era ciência particularmente apreciada por Freud[4]. De fato, ele considerava que o trabalho do psicanalista era igual ao de um arqueólogo, pois ambos escavam o mais fundo que podem para trazer à superfície grandes tesouros que de outro modo permaneceriam enterrados.

Ainda na juventude, Freud era leitor ávido de tudo o que fosse relacionado às descobertas arqueológicas feitas em sua época, principalmente nas localidades de Cairo e de Atenas[5]. O trabalho do arqueólogo Heinrich Schliemann, que tinha alcançado fama e fortuna ao descobrir os restos do que deveria ser a cidade de Tróia, era de grande interesse para ele[6]. Foi através de “Ilios”, livro de Schliemann sobre a escavação de cidade imortalizada por Homero, que Freud começou uma vasta e variada coleção de livros sobre o tema[7]. Em seu trabalho teórico, é comum encontrar referências à arqueologia:

                        A princípio, portanto, pude dispensar a hipnose, porém com a ressalva de que                               poderia fazer uso dela posteriormente, se no curso de sua confissão
                       surgisse algum material cuja elucidação não estivesse ao alcance de sua                                         memória. Ocorreu assim que nesta, que foi a primeira análise integral de uma
                       histeria empreendida por mim, cheguei a um processo que mais tarde transformei                         num método regular e empreguei deliberadamente. Esse processo consistia                                     em remover o material psíquico patogênico camada por camada e gostávamos
                       de compará-lo à técnica de escavar uma cidade soterrada.[8]

Em outro trecho, Freud é ainda mais direto sobre a ligação entre as duas áreas:

                        Ante o caráter incompleto de meus resultados analíticos, não me restou senão                                seguir o exemplo daqueles descobridores que têm a felicidade de trazer à luz do                            dia, após longo sepultamento, as inestimáveis embora mutiladas relíquias da                                antigüidade. Restaurei o que faltava segundo os melhores modelos que me eram                          conhecidos de outras análises, mas, como um arqueólogo consciencioso, não                                  deixei de assinalar em cada caso o ponto onde minha construção se superpõe ao                          que é autêntico.[9]

Bastante interessado nas descobertas arqueológicas que ganhavam os jornais e revistas, Freud bebia da fonte da arqueologia para enriquecer o seu trabalho teórico, como é mostrado em “Totem e Tabu”[10], onde faz referência ao trabalho de Salomon Reinach e de seu famoso artigo “L’art et la Magie[11] [A arte e a Magia]. As investigações de Reinach o levavam a crer que o uso das imagens nas cavernas tinha intuitos mágicos e não estéticos. Eram representações simpatéticas que visavam o sucesso durante a caçada ou coisas ligadas ao cotidiano de nossos antepassados caçadores e coletores. Uma visão com a qual Freud concordava.

Quando Freud morreu, a psicanálise encontrou uma via de mão dupla e passou a ganhar terreno também nas interpretações dos achados arqueológicos. Nas décadas de 1950 e 1960, por exemplo, o arqueólogo e paleontólogo francês André Leroi-Gourhan desenvolveu um método de análise com base estruturalista que trazia muitos dos aspectos teóricos freudianos.

Gourhan resolveu investigar as artes do alto paleolítico em cavernas européias e analisou quais eram os animais mais frequentemente retratados pelos homens pré-históricos e o motivo de serem os mais retratados, sempre baseado em uma teoria interpretativa que em muito se aproximava à teoria dos símbolos freudiana, reconhecidamente carregada de valores ligados à sexualidade[12]. Nesse esquema, Leroi-Gourhan separou e definiu alguns grupos destes animais de acordo com o sexo de cada um e catalogou símbolos que estariam ligados às qualidades masculinas e femininas. Hoje, essa dicotomia já não encontra o mesmo apoio entre os acadêmicos, mas representou um grande avanço no modo de se estudar a arte e a mentalidade pré-histórica.

Freud Colecionador

Antes desinteressado pelo mundo da arte, Freud depois veio a se tornar um grande colecionador de artefatos históricos. Uma coleção composta principalmente por miniaturas egípcias, gregas, chinesas e romanas[13]. As pequenas estatuetas eram companheiras de vigília enquanto Freud costurava as teorias que iriam mudar a forma do Ocidente enxergar e interpretar o mundo.

Em carta ao amigo Wilhelm Fliess, de 1900, Freud reclama do tédio que o domina naquele período e  faz rápida referência a alguns dos seus passatempos, entre eles a história da arte e pré-história.[14] É fato conhecido que, quando Freud teve que fugir de Viena em 1938, quando a cidade estava sob ocupação nazista, ele deixou para trás praticamente tudo. Entretanto, fez questão de não se desfazer de uma cópia de bronze de uma estátua do século II da deusa grega Athena (curiosamente, deusa da sabedoria e da batalha)[15]. Era apenas uma das outras estatuetas que vigiavam o trabalho do pai da psicanálise. Sua mesa de trabalho era abarrotada delas e sua coleção pessoal pode sobreviver graças à princesa Marie Bonaparte, que pagou uma taxa para que os oficiais nazistas pudessem liberar os bens de Freud que ficaram em Viena[16].

Na época em que começou a colecionar, por volta de 1896, o mercado de antiguidades quase não era regulado e podia-se obter ótimas peças retiradas diretamente de sítios arqueológicos por uma pechincha. Como todo bom colecionador, Freud também se preocupava com a autenticidade das obras que adquiria e prontamente se livrava das falsificações que vez ou outra pudessem surgir em meio à coleção[17]. Para garantir a autenticidade de seus artefatos, ele costumava consultar alguns especialistas, incluindo pessoas que trabalhavam em museus. Por conta dessa preocupação, apenas algumas falsificações restaram na coleção original, mas em número muito pequeno se comparado ao volume total (mais de duas mil peças)[18].

Sob o viés psicanalítico, alguns autores atribuem esse impulso colecionista à morte do pai de Sigmund, que faleceu apenas alguns meses antes dele começar sua coleção. Juliet Flower MacCannell, sob o tratamento lacaniano, vê no colecionismo de Freud um hábito que teria sido adquirido para uma ressignificação do desejo e para a criação de um link com a “função paternal”[19]. Já Stephen Barker enxerga as estatuetas colecionadas como figuras sublimadas do pai recentemente falecido[20]. Seja como for, as aquisições tornavam-se cada vez mais frequentes.

Antes da primeira aquisição, Freud já comprava impressões de alguns pintores, mas a custos muito mais baixos, devido à sua baixa renda de estudante. É provável que, em 1885, quando visitou Paris pela primeira vez e conheceu a casa de Jean Martin Charcot[21], seu mentor, o jovem Freud tenha se impressionado com a coleção de antiguidades chinesas e indianas do mestre e com as visitas ao Louvre que acabou por fazer. No entanto, ainda hoje pouco ou quase nada se fala da influência que a arte pode ter exercido sobre a psicanálise, principalmente na sua formação.

Giovanni Morelli e a Prática do Connoisseur

Depois da Idade Média, quando o eixo da existência se deslocou de Deus para o homem, a autoria, e por consequência, a autenticidade, passaram a ser elementos importantes para o discurso da arte. A partir daí, passou ser primordial saber de onde e de que mãos vinham um trabalho artístico[22].

Hoje, o fator autenticidade pode ser a diferença entre centenas e milhões em dinheiro, como bem elucida Raymonde Moulin: “Toda troca de atribuição se converte em um acontecimento monetário e, eventualmente, pode ser o ponto de partida para uma ação judicial”[23].  Por isso, o desenvolvimento de métodos que possam garantir a procedência de uma obra (seja uma tela, desenho, escultura e assim por diante) continua a ser construído até hoje, tijolo a tijolo.

Graças às novas circunstâncias e possibilidades que a tecnologia proporciona, autenticar uma obra muitas vezes faz lembrar um episódio de CSI. A diferença está no fato de que o objetivo não é descobrir o assassino, mas sim o autor. Reflectografia com infravermelho, luz rasante, radiografia, mapas bidimensionais e raio x, tudo isso e mais um pouco faz parte de qualquer trabalho sério de peritagem[24]. Mas nem sempre foi assim.

Antes, era comum que as avaliações fossem feitas por um connoisseur que gozasse de grande respeito. Suas ferramentas de investigação se limitavam aos conhecimentos históricos e subjetivos[25]. No entanto, com o avanço das técnicas de falsificação, apenas o olho nu há muito passou a não ser mais capaz de responder sozinho pela autenticação de obras. É preciso agora um esforço em conjunto de diversas áreas, na direção de uma expertise multidisciplinar que faz com que a responsabilidade não recaia mais sobre a figura de uma única pessoa.

Mais do que uma linha temporal, a divisão que fazemos entre nova e antiga escola de perícia em avaliação de obras de arte se baseia muito mais no método e na mentalidade dominante durante as análises. No século XVII se usava a palavra conoscitore[26] para falar do sujeito que sabia tudo ou quase tudo de determinado assunto, mas que não necessariamente pertencia ao mundo acadêmico.

O médico italiano Giulio Mancini foi um dos primeiros a escrever um livro dedicado inteiramente ao problema de observar e identificar cópias e originais em obras de arte[27]. “Considerazioni sulla pittura” [Considerações sobre a pintura], livro que circulou largamente na sociedade italiana em forma de manuscrito depois de 1621, mas que foi publicado integralmente somente nos meados do século XX, dava dicas, ou melhor, mandamentos de como comprar, pendurar e preservar pinturas. Também ensinava a distinguir obras originais de cópias e falsificações.

Abraham Bosse, importante artista francês do século XVII, defendia a opinião de que apenas outros artistas tinham o conhecimento necessário para julgar questões de autenticidade e autoria[28]. No século XVII era comum que outros artistas fossem chamados para resolver disputas sobre o assunto. Com seu conhecimento, lábia e força de vontade, Mancini chega para dinamitar o paradigma. Àquela altura, Mancini era um verdadeiro estranho no ninho.

Carlo Ginzburg se dedicou a estudar a fundo as fontes e mudanças ocorridas no paradigma indiciário com o passar dos séculos. Depois de muita pesquisa e muito questionamento, ele achou justo dar a Mancini o título de pai da connoisseurship[29].

A figura do connoisseur fora do círculo dos artistas, aquele que tecnicamente não pinta, mas opina como se pintasse, só terá surgimento efetivo a partir do século XVIII, com nomes como Jonathan Richardson e Francesco Milizia.

Caminhando a passos lentos na direção da construção de um saber que fosse reconhecido e crível, a figura do connoisseur era constantemente ridicularizada em jornais, contos e desenhos, cercado de chacota e de piadinhas por todos os lados. Eram descritos como pomposos, pretensiosos e fingidos, a sustentar conhecimentos que tiravam de suas cabeças como um mágico tira um coelho da cartola[30]. Para mudar essa condição, seria preciso bem mais que um comentário florido e um olhar estático.

Entre 1874 e 1876, o médico e historiador de arte italiano Giovanni Morelli publicou uma série de artigos, sob o pseudônimo de Ivan Lermolieff, na revista alemã Zeitschriftfiir für bildende Kunst [Jornal de belas-artes], sobre uma técnica inovadora de identificar e atribuir autoria a obras não-assinadas de grandes mestres da pintura. Para tanto, era preciso prestar atenção a certas minúcias que eram geralmente ignoradas pelos experts do período, como aponta Ginzburg:

                        Ora, Morelli propusera-se buscar, no interior de um sistema de signos                                              culturalmente condicionados como o pictórico, os signos que tinham a                                            involuntariedade dos sintomas (e da maior parte dos indícios). Não só:                                            nesses signos involuntários […] Morelli reconhecia o sinal mais certo da                                            individualidade do artista.[31]

O modo como determinado pintor executa partes como unhas, dedos, orelhas e nariz diz muito sobre a particularidade da sua produção. Sendo assim, pela correta análise de tais simples elementos, segundo Morelli, seria possível identificar com maior acuidade um trabalho de Michelangelo ou Botticelli.[32]

O que Morelli propunha era um duro golpe contra a pura subjetividade do connoisseur até então aplicada nesse tipo de análise. Em sua época, Morelli já afirmava que os museus estavam cheios de obras com autorias mal atribuídas e causou rebuliço ao reavaliar atribuições de obras de grandes museus[33]. Hoje, sabemos que não é apenas a questão da autoria, mas também de originalidade. Em 2015, Colette Loll, fundadora e diretora da Art Fraud Insights, afirmou que cerca de 40% das obras vendidas no mundo são na verdade falsificações.[34] Cenário triste, mas que toma novas direções graças à interação entre arte, direito e ciência, iniciada pelos esforços de Morelli.

O método moreliano foi a primeira tentativa real de dar seriedade científica à prática da avaliação de obras de arte, antes feita apenas com critérios não técnicos. Uma tentativa de dar objetividade para uma prática dominada pela subjetividade do indivíduo avaliador. Para ele, arte e ciência eram patrimônios de toda a humanidade e não tinham nacionalidade.[35]

O papel do connoisseur ainda hoje é essencial para uma perícia, mas agora precisa estar aliado a outras práticas e saberes, como os exames técnicos e científicos, por meio dos quais se consegue contar a história de determinada obra e situá-la corretamente em seu devido tempo e contexto e com a devida autoria reconhecida.

Sem o primeiro passo dado por Morelli a caminho de uma análise mais crítica e criteriosa, é provável que ainda estaríamos à mercê dos caprichos e desmandos da figura do connoisseur e que ainda mais erros continuariam a ser cometidos no processo de avaliação e atribuição de obras de arte.

O (Des)Encontro

Como dito anteriormente, no início da sua vida intelectual, o jovem Freud não sentia-se atraído por arte, como reforça em correspondência remetida ao amigo de infância Emil Fluss, quando comenta brevemente sobre sua visita à Exposição Mundial de Viena de 1873 (um dos eventos de maior importância para a arte até os dias atuais): “Eu visitei a exposição por duas vezes. É interessante, mas não me surpreendeu. Muitas coisas que pareciam agradar às outras pessoas não me atraíam”.[36]

Infelizmente, Freud nunca se encontrou pessoalmente com Morelli. Com certeza os dois teriam muito o que discutir e poderiam até colaborar um com o outro. Mas a leitura posterior dos escritos do italiano sobre pintura foi suficiente para deixar marcas profundas no pai da psicanálise. Essa leitura provavelmente se deu em duas ocasiões distintas.[37] A primeira entre 1895 e 1896, portanto, já depois do falecimento de Morelli, mas em uma edição que ainda contava com a assinatura de Ivan Lermolieff. A segunda, alguns anos depois, em 1889, quando Freud por acaso descobriu que a verdadeira identidade do crítico de arte russo Ivan Lermolieff era na verdade o médico e político italiano.[38]

De acordo com a trajetória intelectual de Freud, é possível depreender uma mudança do seu ponto de vista em relação às obras de arte após conhecer o trabalho inovador de Morelli. Uma influência claramente notada nos textos voltados à arte – principalmente em “O Moisés de Michelangelo” (1914), onde Freud faz questão de descrever o primeiro contato com a obra dele:

                        Muito antes de iniciar qualquer atividade psicanalítica, soube que um crítico de                              arte russo, Ivan Lermolieff, cujos primeiros trabalhos em alemão datam de 1874                            a 1876, tinha provocado uma revolução nas galerias de pintura da Europa,                                      revisando a atribuição de muitos quadros a diversos pintores, ajudando a                                        distinguir com segurança as cópias dos originais, e estabelecendo, com as obras                            assim libertadas de sua classificação anterior, novas individualidades artísticas.                              Chegou a êstes resultados prescindindo da impressão do conjunto e acentuando                            a importância característica dos detalhes secundários, de minúcias tais como a                              estrutura das unhas dos dedos, o pavilhão da orelha, o nimbo das figuras de                                  santos e outros elementos que o copista descuida de imitar e que todo artista                                executa numa forma que lhe é característica. Despertou-me ainda maior interêsse                          verificar que sob o pseudônimo russo ocultava-se um médico italiano, chamado                            Morelli, morto em 1981, quando ocupava uma cadeira no Senado da sua pátria.                            Na minha opinião, seu procedimento mostra grandes afinidades com a                                            psicanálise; também a psicanálise costuma deduzir de traços pouco estimados ou                          inobservados, do resíduo ― o “refuse ― da observação, coisas secretas ou                                      encobertas.[39]

Fica então evidente que Freud até mesmo acreditava que o método criado por Morelli era parente da psicanálise, já que também partia da premissa de que seria necessário investigar pontos insuspeitos para se chegar a uma causa ou a um “culpado”. Seguindo essa lógica, cada pequeno detalhe pode ser considerado como chave para acessar os segredos mais íntimos. Desta forma, a análise de uma obra de arte em muito se liga à análise psicanalítica.

É possível supor que, assim como Schliemann, Morelli também tenha sido uma espécie de herói para Freud, mas um herói de caráter mais oculto e não tão divulgado até o momento, infelizmente.

 Conclusão

 Através dos anos, a psicanálise construiu uma forma sólida e duradoura de leitura do mundo. Ainda que seja constantemente questionada, até por si mesma, ela continua a ter, merecidamente, grande prestígio nas mais diversas veredas do saber.

Até hoje, peritos, pesquisadores e historiadores da arte se perguntam sobre os motivos que levam um falsificador a fazer o que faz. Quase sempre, vão procurar as respostas em mecanismos psicológicos, em busca de alguma explicação plausível na vontade de enganar, que ultrapasse o lucro imediato.[40] Nesse quesito, a psicanálise é ferramenta de grande utilidade, já que pode oferecer soluções que extrapolam os limites do conhecimento técnico do perito.

Ao analisar com afinco as similaridades entre as duas práticas, fica ainda mais evidente a proximidade entre ambas. O conhecimento do método moreliano pelo psicanalista pode oferecer um leque de possibilidades na hora de buscar respostas, já que se trata também de um trabalho de investigação. Da mesma forma, ter noções de psicanálise pode ajudar o perito em análise e avaliação de obras de arte a encontrar caminhos que de outro modo continuariam encobertos. Nos dois casos, a ajuda seria mais teórica do que prática, é verdade. Mas, afinal, o que é ciência[41] sem teoria?

Depois de tantos anos de distanciamento, promovidos pela falta de interesse das duas partes, o tempo é apropriado para que as teorias de Freud e Morelli, duas grandes mentes, voltem a dialogar.

Notas:

[1] MORELLI, Giovanni (1892) Critical Studies of Italian Painters: critical studies of their works. Londres: John Murray;  p. 76.

[2] FOCILLON, Henri (1934) Vie des Formes. Paris: Presses Universitaires de France, 1981; p. 5.

[3] GINZBURG, Carlo (1986) Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; p. 148.

[4] LOEWENBERG, Peter (1996) “The Pagan Freud”.  In: BARKER, Stephen (Org.) Excavations and Their Objects. New York: State University of New York Press; p. 36.

[5] GAMWELL, Lynn (1989) “The Origins of Freud’s Antiquities Collection”. In: GAMWELL, Lynn; WELLS, Richard (Org.) Sigmund Freud and Art. New York: Harry N. Abrams Inc; p. 22.

[6] Em sua coleção pessoal, Freud tinha objetos do período micênico, o mesmo tipo encontrado nas escavações feitas por Schiliemann.

[7] GAMWELL, Lynn (1989) “The Origins of Freud’s Antiquities Collection”. In: GAMWELL, Lynn; WELLS, Richard (Org.) Sigmund Freud and Art. New York: Harry N. Abrams Inc; p. 22.

[8] FREUD, Sigmund (1893-95) “Estudos Sobre a Histeria”. In: Volume II – Obras completas psicológicas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996; p.105.

[9] FREUD, Sigmund (1905) “Fragmento da Análise de Uma Histeria”. In: Volume XII – Obras completas psicológicas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996; p. 10.

[10] FREUD, Sigmund (1913) “Totem e Tabu”. In: Obras Completas de Sigmund Freud, Volume VII. Rio de Janeiro: Editora Delta S.A, 1958; p. 457.

[11] REINACH, Salomon (1905) Cults, Mythes et Religions. Paris: Ernest Leroux, Éditeur; p. 125.

[12] LEROI-GOURHAN, André (1958) “Répartition et groupement des animaux dans l’art pariétal paléolithique”. Bulletin de la Société préhistorique de France, Paris, vol. 55, n. 9, pp. 515-528.

[13] GAY, Peter (1989) “Introduction”. In:  GAMWELL, Lynn; WELLS, Richard (Org.) Sigmund Freud and Art. New York: Harry N. Abrams Inc; p. 16.

[14] MASSON, Jeffrey Moussaieff (1985) A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess ― 1887-1904. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1986; p. 416.

[15]  GAMWELL, Lynn (1989) “Preface”. In: GAMWELL, Lynn; WELLS, Richard (Org.) Sigmund Freud and Art. New York: Harry N. Abrams Inc; p. 11.

[16] GAY, Peter (1989) “Introduction”. In:  GAMWELL, Lynn; WELLS, Richard (Org.) Sigmund Freud and Art. New York: Harry N. Abrams Inc; p. 11.

[17] GAMWELL, Lynn (1989) “The Origins of Freud’s Antiquities Collection”. In: GAMWELL, Lynn; WELLS, Richard (Org.) Sigmund Freud and Art. New York: Harry N. Abrams Inc; p. 23.

[18] GAMWELL, Lynn (1989) “The Origins of Freud’s Antiquities Collection”. In: GAMWELL, Lynn; WELLS, Richard (Org.) Sigmund Freud and Art. New York: Harry N. Abrams Inc; p. 23.

[19] MACCANNELL, Juliet Flower (1996) “Signs of the Fathers: Freud’s Collection of Antiquities”. In: BARKER, Stephen (Org.) Excavations and Their Objects. New York: State University of New York Press; p. 36.

[20] BARKER, Stephen (1996) “Father Figures in Freud’s Autoaesthetics”. In: Excavations and Their Objects. New York: State University of New York Press; p. 84.

[21] Charcot nutria um interesse especial pela arte e, juntamente com Paul Richer, escreveu dois livros em que analisam representações demoníacas em obras de arte, com o intuito de identificar a histeria como um mal muito anterior ao século XIX.

[22] CONRADO, Marcelo (2013) A arte nas armadilhas dos direitos autorais: uma leitura dos conceitos de autoria, obra e originalidade.  321 f. Tese (Doutorado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas da UFPR – Faculdade de Direito. Universidade Federal do Paraná, Curitiba; p. 38.

[23] MOULIN, Raymond (2012) El Mercado del Arte. Buenos Aires: la marca editora; p. 21; tradução livre.

[24] CRADDOCK, Paul (2009) Scientific Investigation of Copies, Fakes and Forgeries. Oxford: Butterworth-Heinemann.

[25] GIBSON-WOOD, Carol (1988) Studies in the Theory of Connoisseurship from Vasari to Morelli. New York: Taylor & Francis; p. 42.

[26] GIBSON-WOOD, Carol (1988) Studies in the Theory of Connoisseurship from Vasari to Morelli. New York: Taylor & Francis; p.11.

[27] SUTTON, Peter (2004) “Rembrandt and a Brief History of Connoisseurship”. In: SPENCER, Donald (Org.) The Expert versus the Object: Judging Fakes and False Attributions in the Visual Arts. New York: Oxford University Press; p. 31.

[28] SUTTON, Peter (2004) “Rembrandt and a Brief History of Connoisseurship”. In: SPENCER, Donald (Org.) The Expert versus the Object: Judging Fakes and False Attributions in the Visual Arts. New York: Oxford University Press; p. 31.

[29]  GINZBURG, Carlo (1986) Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; p. 159.

[30] SUTTON, Peter (2004) “Rembrandt and a Brief History of Connoisseurship”. In: SPENCER, Donald (Org.) The Expert versus the Object: Judging Fakes and False Attributions in the Visual Arts. New York: Oxford University Press; p. 31.

[31] GINZBURG, Carlo (1986) Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; p. 171.

[32] GINZBURG, Carlo (1986) Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; p. 144.

[33] SUTTON, Peter (2004) “Rembrandt and a Brief History of Connoisseurship”. In: The Expert versus the Object: Judging Fakes and False Attributions in the Visual Arts. New York: Oxford University Press; p. 34.

[34] ABRIL, Ana. Verdade ou mentira?  Select, São Paulo, 10/10/2016. Disponível em: <https://www.select.art.br/verdade-ou-mentira/>. Consultado em: 25/04/2020.

[35] MORELLI, Giovanni (1892) Critical Studies of Italian Painters: critical studies of their works. Londres: John Murray; p. 24.

[36] FREUD, Ernst Ludwig (1960) The Letters of Sigmund Freud. New York: Basic Books; p. 4; tradução livre.

[37] GINZBURG, Carlo (1986) Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; p. 148.

[38] GINZBURG, Carlo (1986) Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; p. 149.

[39] FREUD, Sigmund (1914) “O Moisés de Michelangelo”. In: Obras Completas de Sigmund Freud, Volume VII. Rio de Janeiro: Editora Delta S.A, 1958; p. 158.

[40] CHARNEY, Noah (2012) The Art of Forgery. New York: Phaidon.

[41] A discussão sobre a psicanálise ser ou não uma ciência continua ainda continua viva. De todo modo, é um debate que fica em segundo plano face às profundas e importantes contribuições de Freud para a compreensão do que é de fato ser humano

* Publicado originalmente na revista Lacuna.

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