Ver ou não ver, eis a questão

Obras de arte, lavagem de dinheiro e a Teoria da Cegueira Deliberada

Por: Jocê Rodrigues

Não é novidade que as obras de arte, historicamente falando, sempre foram objeto dos mais variados tipos de crime: roubo, furto, contrabando, falsificações e por aí vai. Todavia, falar em lavagem de dinheiro através delas é algo um pouco mais recente do que se imagina.

Se os motivos que levaram à criminalização da lavagem nos Estados Unidos remontam ao início do século XX, época em que passou a vigorar no país a famigerada Lei Seca, o uso de bens culturais em tal ato ilícito só começou a ser discutido no final dele. Foi o período em que as ações do crime organizado deram ao mundo uma nova perspectiva da realidade, devido ao volume e à contundência de seus “negócios”.

Da mesma forma que há males que vêm para o bem, há bens que vêm para o mal, mesmo que indiretamente, e um dos principais motivos que explicam a ascensão criminosa no mundo das artes é justamente a intensificação dos mecanismos de prevenção e combate à lavagem de dinheiro. Muitos deles pensados e desenvolvidos pelo Grupo de Ação Financeira Internacional contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF), organização intergovernamental, cujo propósito é exatamente o de promover políticas nacionais e internacionais de combate à lavagem.

No ambiente empresarial, nas instituições e mesmo no setor público, é comum ouvir falar em programas de criminal compliance, uma importante ferramenta que ajuda na criação e implementação de normas de governança para prevenir práticas ilícitas. No fim das contas, todas essas barreiras, construídas com o intuito de dificultar a utilização das “tradicionais” formas de lavagem, como a criação de empresas fantasmas, centros offshore, fundo trust, técnicas como o sistema dólar-cabo e o smurfing, involuntariamente levaram à reinvenção e até à sofisticação deste tipo de crime (o que não significa que as técnicas citadas não continuem a ser utilizadas em larga escala).

Mas não só isso. Existem ainda outras duas questões complementares que interessam especialmente ao mundo das artes e que podem nos ajudar a entender esta novel situação:

(i) diferente do que ocorre com estes outros mecanismos de lavagem, onde o agente busca única e exclusivamente encobrir a origem espúria dos valores obtidos ilicitamente, no mundo das artes, as condutas nem sempre buscam apenas os ganhos monetários; às vezes o agente busca prestígio social ou a criação de conexões com pessoas influentes. Ou seja: muitas vezes existem fatores externos e que não são usualmente buscados por aqueles que trilham o caminho do crime;

(ii) em segundo lugar, a arte é um setor atrativo para a prática de lavagem em razão da possibilidade de se realizar grandes transações monetárias, bem como por conta do desconhecimento geral desse mundo em particular, muitas vezes marcado pela confidencialidade. Afinal, as obras de arte são bens únicos, e seu valor intrínseco muitas vezes não é economicamente aferível, salvo quando a mesma é vendida.

Mas afinal, como é possível evitar a manipulação ou o uso de obras de arte para fins ilícitos?

No afã de contribuir com a reflexão sobre a lavagem de dinheiro por meio de obras de arte, apresentamos algumas breves considerações sobre um tema relativamente recente no cenário jurídico nacional: a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada nos crimes de lavagem.

O CRIME DE LAVAGEM

No Brasil, a lavagem de dinheiro está prevista no art. 1º da Lei nº 9.613/98. Mas, afinal, em que consiste este tipo de crime?

A questão pode ser resumida da seguinte forma: determinados crimes geram vultosas quantidades monetárias (ex: tráfico de drogas, tráfico de armas, corrupção, etc.); todavia, os valores obtidos não podem ser regularmente incorporados ao sistema financeiro; neste sentido, para que os agentes possam usufruir dos valores ilicitamente obtidos, muitas vezes eles empregam (diretamente ou por intermédio de terceiros) mecanismos para tentar dar aparência de licitude para bens, direitos e valores que possuem origem espúria. A tais procedimentos se dá, em sentido amplo, o nome de lavagem de dinheiro.

Típico ato que faz juz ao ditado popular que diz que o mal nunca anda sozinho, a lavagem de dinheiro depende da prática de um crime antecedente para existir – é o que se chama, na linguagem jurídica, de crime diferido, ou crime remetido. Segundo estudos desenvolvidos pelo GAFI, a lavagem de dinheiro usualmente se perfaz em três etapas, também conhecidas por “fases da lavagem”:

1ª) Colocação (Placement): consiste na separação física do dinheiro do crime antecedente e introdução do mesmo no sistema financeiro. Importante notar que esta etapa é precedida da captação e concentração do dinheiro. Sem sombra de dúvida, esta é a fase mais arriscada para o agente, em razão da sua proximidade com a origem ilícita.

2ª) Dissimulação (Layering): nessa fase, multiplicam-se as transações anteriores, de modo que se perca a trilha do dinheiro (paper trail), dificultando o rastreamento da sua origem. Ou seja, cria-se um emaranhado de complexas transações financeiras para encobrir a origem dos valores.

3ª) Integração (Integration): nessa fase, já com a aparência lícita, o capital é formalmente incorporado ao sistema econômico, geralmente por meio de investimentos no mercado mobiliário e imobiliário. A integração faz com que este dinheiro/bem pareça ter sido ganho de maneira lícita, o que dificulta ainda mais a investigação.

Mas uma das questões de maior relevância – não apenas para aqueles que atuam no mundo das artes, mas também para os operadores do Direito – diz respeito ao chamado “elemento subjetivo do tipo”, mais conhecido como “dolo”. Afinal, para ter o crime de lavagem, é imprescindível que os valores/bens tenham advindo de crime antecedente e que o agente esteja ciente de tal condição.

E é aí que começam a surgir algumas questões bem espinhosas. Por exemplo: se o sujeito adquire uma obra de arte e desconhece que a mesma possui origem espúria, haveria o crime?; e se ele participasse de uma negociação de uma obra de arte roubada/falsificada, haveria o crime de lavagem?; e se ele vende uma obra de arte e recebe, por esta venda, dinheiro oriundo de crimes de corrupção, tráfico ou outro, seria possível falar de responsabilidade criminal por lavagem?

Para responder a estes questionamentos, devemos antes tecer algumas linhas sobre o referido “elemento subjetivo do tipo”, imprescindível para se falar em crime.

MÃOS LIMPAS, DINHEIRO SUJO

Em nosso ordenamento jurídico, os crimes podem ser dolosos ou culposos (doloso quando o agente tem a precípua intenção de violar a norma; e culposo, quando ele, mesmo sem intenção de infringir a lei, quebra com um dever de cuidado – porque foi negligente, imprudente ou imperito – e acaba violando a norma). É importante frisar que, aqui, muitos crimes só são puníveis na forma dolosa, conforme dispõe o art. 18 do Código Penal.

Por opção de política criminal, no Brasil, a lavagem de dinheiro só é punível quando comprovada a intenção de cometer o crime. Deste modo, não se pune a lavagem culposa. Sendo assim, aquele que participa culposamente de uma negociação de artes, sem saber que estas são objeto de roubo/fraude, não poderia – ao menos em tese – responder criminalmente.

Mas, como fica a questão do “grau de consciência”? Qual o grau de consciência exigido do agente sobre a procedência dos bens/valores para que se possa caracterizar a lavagem? É suficiente que ele apenas desconfie da origem ilícita (dolo eventual)? Ou é necessário que ele tenha consciência plena (dolo direto) do delito antecedente? O problema é que a dogmática penal entende que existem duas formas de dolo – o direto (querer) e o eventual (assumir o risco).

Quando se trata crime de lavagem, há duas correntes que discutem o tema:

a) há quem entenda que somente o dolo direto é punível. É o que se extrai da Convenção de Viena (art. 3, item 1, b) e da Convenção de Palermo (art. 6º, item 1, ii);

b) por outro lado, há quem defenda que a mera suspeita da origem ilícita já é suficiente para a caracterização do crime.

Importante notar que cada vez mais vem crescendo a jurisprudência no sentido de ser admissível o dolo eventual. Um exemplo desta tendência pode ser visto na Ação Penal nº 470 – Caso Mensalão, no qual vários Ministros do STF admitiram o dolo eventual na lavagem. E o mesmo vem ocorrendo na Lava Jato. Mas o problema não para por aí. É que também existe o debate em torno da Teoria da Cegueira Deliberada (Willful Blindness)1.

Diretamente ligada à análise do dolo (aplicável em especial nos crimes econômicos), a teoria nasceu em países que seguem uma tradição jurídica anglo-saxã (common law), como é o caso da Inglaterra e EUA. Através dela se reconhece o dolo não apenas nas hipóteses em que o agente conhece (dolo direto) ou suspeita (dolo eventual) da origem espúria dos bens/valores, mas também quando ele conscientemente fecha os olhos para não ter ciência de qualquer característica suspeita sobre a procedência dos bens e valores.

Segundo Pierpaolo Bottini, em artigo para o Conjur, a cegueira deliberada ocorre geralmente em casos nos quais o agente tem por possível a prática de ilícitos no âmbito em que atua, e cria mecanismos que o impedem de obter ou aperfeiçoar o conhecimento dos fatos”. Em suma, como colocado por Badaró e Bottini no livro Lavagem de dinheiro: Aspectos penais e processuais penais, “a intencionalidade do agente em se colocar deliberadamente em situação de ignorância afastaria o erro de tipo e legitimaria o reconhecimento do dolo”.

DE OLHOS BEM FECHADOS

Em 2016, o jogador Lionel Messi foi condenado a 21 meses de prisão por fraude fiscal. O motivo foi o desvio de mais de 4 milhões de euros da Receita espanhola, provenientes da exploração de direitos de imagem entre os anos de 2007 a 2009. Com base na teoria da cegueira deliberada, a Seção Oitava da Audiência de Barcelona entendeu que Messi voluntariamente escolheu lavar as mãos e não enxergar que um crime estava sendo cometido.

No Brasil, o primeiro caso de que se teve notícia em que a teoria foi usada com efetividade aconteceu em 2005, no Ceará. Os donos de uma concessionária foram condenados por terem vendido 11 carros para os integrantes da quadrilha responsável pelo famoso assalto ao Banco Central de Fortaleza no mesmo ano. Uma transação no valor de 1 milhão de reais.

No entendimento do juiz da 11ª Vara Federal, os dois sócios tinham consciência de que o dinheiro recebido tinha origem ilícita e condenou-os por lavagem de dinheiro, com base de que a ignorância deles perante a situação foi intencional. Com bons antecedentes e dispostos a ajudar com as investigações, os dois recorreram e se livraram das acusações pouco tempo depois.

De lá até aqui, o uso da teoria tem-se tornado mais corriqueiro. No entanto, fica claro que é preciso muito cuidado ao lidar com os desdobramentos da teoria, especialmente porque sua aplicação gera uma espécie de presunção de responsabilidade, que não é admitida no ordenamento jurídico brasileiro. Na ânsia por buscar culpados, esse tipo particular de cegueira pode acometer também os responsáveis pela distribuição da justiça. O risco ainda é alto demais.

O QUE A ARTE TEM A VER COM ISSO?

Como dito inicialmente, a lavagem de dinheiro se sofisticou, tornou-se muitas vezes tecnológica, transnacional e realizada por grupos muito bem organizados. O mercado de arte, a partir de suas vulnerabilidades, tornou-se um campo atraente para quem busca o ilícito, muitas vezes valendo-se da ignorância deliberada de alguns operadores do mercado de arte. Casas de leilões, galeristas, colecionistas e marchands são normalmente citados em casos de falsificações, roubos e, é claro, lavagem.

Isso faz surgir a necessidade de repensar as práticas de venda, aquisição e doação no mercado de artes. Graças a falhas na prática de due diligence, não é raro encontramos problemas com autenticidade e a procedência de bens culturais em leilões e feiras de arte. Como aconteceu com as gigantes Christie’s e Sotheby’s, que em 2014 tinham entre suas coleções à venda obras que foram posteriormente identificadas como espólios da Guerra Civil do Camboja (1970-1975). Polêmica que poderia ter sido evitada com uma pesquisa séria da provenance dos artefatos.

Para que o mercado de arte responsável se fortaleça, mais do que nunca, é preciso ressaltar a importância de se administrar cuidadosamente os negócios envolvendo a produção artística, seja seguindo dicas e orientações encontradas em manuais como o “Guia do Artista Visual”, ou consultado profissionais qualificados que joguem nova luz sobre antigas e incômodas sombras no caminho.

Como apontam Christopher Marinello e Jerome Hasler2, a due diligence não deve ser encarada como um seguro contra responsabilidades futuras, mas como uma maneira de fazer negócios de modo claro e transparente para reduzir disputas e reivindicações no mercado como um todo. Sem dúvidas, uma tarefa difícil no cenário atual, mas não impossível se os olhos dos envolvidos estiverem sempre abertos e dispostos a enxergar.

“Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que vendo, não vêem”, escreveu José Saramago em seu célebre Ensaio Sobre a Cegueira, trazendo à tona a responsabilidade de enxergar em um mundo onde todos estão cegos. Por vezes, o pior cego é realmente aquele que não quer ver.

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1 Sobre o tema, vale a pena a leitura do artigo intitulado “Mejor no Saber ― Sobre la doctrina de la ignorancia deliberada en Derecho penal”, escrito por Ramon Ragués i Vallès, que discute como a cegueira deliberada migrou do âmbito social para o Direito Penal.

2 No artigo “What Is Due Diligence? Making the Case for a More Responsible Art Market”, presente no livro Art Crime – Terrorists, Tomb Raiders, Forges and Thieves (2016).

* Publicado originalmente no JOTA.

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