Provas da arte: standard e inferência probatória em processos com obras de arte
Casos de roubo, falsificação, herança de obras saqueadas e lavagem de dinheiro são principais desafios
Por: Jocê Rodrigues, Joyce finato Pires
O mundo da arte é fluido feito corredeira de rio. É de difícil apreensão no primeiro momento e, de vez em quando, no segundo também. As vicissitudes da arte não se encaixam muito bem em padrões, ainda que precisemos de alguns deles. E quando arte e direito precisam se alinhar dentro dos tribunais, quase sempre é um Deus nos acuda. E não é para menos.
A produção de prova nos casos de crimes contra a arte passa por diversas etapas, como a verificação da provenance e análise científica da obra, que deve ser feita de modo adequado e sério, como em qualquer outro caso que envolva uma perícia forense. O problema é que ainda falta o entendimento de que é necessário ir além do que os olhos podem ver.
É preciso pensar o problema desde suas estruturas, para depois discutir o que se vê na superfície e aparar as arestas. Trabalho que carece de atenção aos detalhes e que não dá para ser feito em apenas um artigo. Por isso, num primeiro momento, vamos nos deter brevemente sobre o peso e a importância da prova em processos envolvendo obras de arte.
Casos de roubo, falsificação, herança de obras saqueadas e lavagem de dinheiro são os principais problemas do campo. As questões mais recorrentes para quem lida com querelas judiciais que têm bens e patrimônios culturais em seu centro são: como estabelecer um standard probatório que satisfaça a necessidade de cada caso? Qual tipo de inferência probatória deveria ser aplicada?
A última dúvida é a mais “fácil” de ser respondida, já que a inferência epistemológica é quase sempre a mais acertada e desejada em todo tipo de caso, seja na esfera civil ou penal.
No entanto, o que se vê ainda é muita decisão sendo tomada por meio de inferência interpretativa, onde se observa a sobreposição da interpretação pessoal e íntima do que uma obra de arte é ou deve ser, e não uma avaliação séria das provas em relação ao caso que está sendo julgado.
“No mundo ideal, um processo judicial inicia-se com as alegações das partes, desenvolve-se na fase probatória e termina após a valoração racional com uma decisão que se justifica num robusto conjunto de informações que corrobora aquelas alegações”, esclarece a professora de Direito Probatório Janaina Matida em artigo escrito em parceria com Rachel Herdy.
“Terminada a produção das provas, o juiz teria respostas sobre os fatos alegados. Nesse passo, estaria apto a formular a sua decisão com base num exercício cognitivo pleno; isto é, sem o constrangimento de regras que pré-determinam o rendimento probatório de determinados elementos de prova (como era o caso das ‘provas legais’). Esse seria o cenário das inferências probatórias epistêmicas”, pontuam as autoras[1].
Em outro artigo, dessa vez assinado em conjunto com o juiz de Direito Alexandre Morais da Rosa, Matida faz uso da metáfora do salto com vara para melhor esclarecer a importância de um olhar crítico e criterioso sobre o papel das provas no processo: “um standard probatório funciona como o sarrafo no salto com vara, podendo ser posicionado mais baixo ou mais alto. A maior ou menor altura imporá, tal como no salto com vara, graus distintos de dificuldade ao jogador”, escrevem.
Definir a altura desse sarrafo é tarefa complicada, pois é preciso levar em conta a complexidade de cada caso. Some-se a isso a dificuldade natural do julgador ao ter que decidir sobre assuntos que versam sobre o universo artístico, tão cheio de meandros e de armadilhas nas quais é fácil cair, já que o próprio conceito de arte está em constante movimento e transformação.
Neste cenário, prezar pelo correto andamento processual e respeitar o standard probatório constitui conceito fundamental para que os casos jurídicos envolvendo obras de arte sejam julgados de modo apropriado e não aleatório.
[1] MATIDA, Janaina; HERDY, Rachel. As inferências probatórias: compromissos epistêmicos, normativos e interpretativos. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 73, jul./set. 2019, p. 133-155.
* Publicado originalmente no JOTA.