O último apelo de Stefano Rodotà

As palavras direito e amor são compatíveis, podem ser pronunciadas juntas?

Por: Jocê Rodrigues

“Tinha que ensiná-la a pensar no amor como um estado de graça que não era meio para nada, e sim origem e fim em si mesmo.”

Gabriel García Marquez, O Amor nos Tempos do Cólera

“Para onde um homem deve dirigir o seu pensamento para não ser considerado louco?”, eis o problema colocado pelo doutor Gomperz, personagem de Jerusalém, intrigante romance do ainda mais intrigante Gonçalo M. Tavares.

Médico-gestor do respeitado Hospício Georg Rosenberg, Gomperz Rulrich é representante máximo da ciência fria e calculista, herdeira do pensamento violentamente inquiridor de Francis Bacon – que logo foi seguido de perto por Descartes.

Em seu local de trabalho não cabem exageros e desmedidas. Tudo deve ser controlado e condicionado. Afinal, aquele era um lugar feito “para eliminar mistérios”.

Um ambiente de disciplina e moderação, onde a existência dos internos (chamados no livro de “hóspedes”) era devidamente arredondada, de modo que nada sobressaísse aos contornos da normalidade. Afetos, emoções, impulsos. Nada que faça transbordar a taça da existência mediana.

Salvas as devidas proporções, o Direito é um pouco como Gomperz. Gosta de dividir, separar e catalogar para, em seguida, guardar tudo em caixas distintas, que serão ordenadas de acordo com seus tipos, tamanhos, cores, etc. Não sem antes descartar tudo que considerar excessivo. Hábitos, comportamentos. Qualquer coisa não condizente com os padrões é logo tratada e corrigida.

Ora, existe algo mais irregular, imprevisível e cheio de altos e baixos do que o amor, esse fenômeno que parece acompanhar a humanidade desde tempos imemoriais?

Por muito tempo, o amor e a lei foram como água e óleo. Não se misturavam. Os interesses não batiam, os gênios eram incompatíveis. Com o passar dos anos, as coisas foram se transformando, os costumes foram se modificando e as relações afetivas passaram a ganhar terreno sobre as relações de interesse. Mas não o suficiente. Ainda são muitas as restrições, interdições e desigualdades. Muitas são as amarras, regras e grilhões impostas pela letra da lei.

Depois de se dedicar a investigar com aguda atenção o direito da propriedade, a globalização, a bioética, a proteção de direitos e segurança na era da internet, Stefano Rodotà (1933-2017) se lançou àquele que talvez tenha sido o seu maior desafio intelectual: estudar a conturbada relação entre a rigidez objetiva do Direito e a liberdade subjetiva do que chamamos amor.

O livro Diritto d’amore (Laterza, 2015), último publicado pelo autor em vida, traz uma análise profunda das incompatibilidades e dificuldades do diálogo entre os dois, principalmente por parte do Direito: “As palavras direito e amor são compatíveis, podem ser pronunciadas juntas? Ou elas pertencem a lógicas tão conflitantes que ambas tentam se subjugar?”, pergunta o mestre italiano logo de cara.

“A lei tem sido muito usada como uma ferramenta para neutralizar o amor, como se o amor, deixado por si só, corresse o risco de dissolver a ordem social.”

Outro dos inúmeros pontos sensíveis tocados de modo lúcido pela obra é o de como se criou barreiras jurídicas para as relações afetivas, afastando-as cada vez mais da realidade e da natureza humana. Agindo dessa forma, o Direito restringe e ignora toda a complexidade da subjetividade humana. Na concepção de Rodotà, o amor tornou-se “alérgico à falta de jeito do Direito Civil”.

As ligações entre o matrimônio e o contrato de propriedade continuam aparentes: cada cônjuge, de maneira assimétrica, ainda acredita ter o direito sobre o corpo do outro e, sobre a pessoa do outro. Apoiado pelos dispositivos legais de diversas épocas, o homem (o sexo masculino) sempre foi o principal beneficiado da relação conjugal. Dele eram as regalias de proprietário, o que levou a um enrijecimento na dinâmica da vida a dois.

“Reafirmando o modelo masculino com a forma da norma jurídica, a lei levantou uma barreira robusta, às vezes inviolável, entre amor e vida”, escreveu Stefano. Uma barreira que se estende às escolhas individuais e ao desejo de cada um.

“Estamos diante de um conflito, travado, porém, não em pé de igualdade, com o poder concentrado substancialmente no lado da lei, que o exerce como ferramenta para disciplinar o amor, a ponto de negar à pessoa a liberdade de se apaixonar.”

Publicado apenas alguns meses antes do Ato nº 76, de 2016 (popularmente conhecido como Lei Cirinnà), dedicado à legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, o livro discute ainda a questão do casamento homoafetivo de forma crítica e humana.

Para Rodotà, distinguir o casamento homoafetivo do casamento héterossexual é inteiramente desnecessário e até errôneo, já que tal nomenclatura serve para mostrar um regime de exceção em relação ao matrimônio considerado “normal”. Ou seja, para ele, não deveria ser necessário o termo “casamento homoafetivo”, apenas casamento.

O autor defende, assim, uma radical liberdade do sujeito em suas escolhas sexuais e sentimentais, das quais o Direito não poderia intervir de outro modo que não fosse na forma de incentivo e de garantia de liberdades. Todo o resto é miudeza.

Escrever Diritto d’amore foi o último grande gesto de coragem de uma mente preocupada com a demasiada institucionalização da vida. Um grito em favor da liberdade e também da subjetividade.

“Amo, logo existo” (amo ergo sum), foi o novo cogito proposto por Stefano Rodotà. Uma lição que precisa ser repetida à exaustão por todo bom civilista, até que ela seja finalmente compreendida.

* Publicado originalmente no JOTA.

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