O último apelo de Stefano Rodotà
As palavras direito e amor são compatíveis, podem ser pronunciadas juntas?
Por: Jocê Rodrigues
“Tinha que ensiná-la a pensar no amor como um estado de graça que não era meio para nada, e sim origem e fim em si mesmo.”
Ora, existe algo mais irregular, imprevisível e cheio de altos e baixos do que o amor, esse fenômeno que parece acompanhar a humanidade desde tempos imemoriais?
Por muito tempo, o amor e a lei foram como água e óleo. Não se misturavam. Os interesses não batiam, os gênios eram incompatíveis. Com o passar dos anos, as coisas foram se transformando, os costumes foram se modificando e as relações afetivas passaram a ganhar terreno sobre as relações de interesse. Mas não o suficiente. Ainda são muitas as restrições, interdições e desigualdades. Muitas são as amarras, regras e grilhões impostas pela letra da lei.
Depois de se dedicar a investigar com aguda atenção o direito da propriedade, a globalização, a bioética, a proteção de direitos e segurança na era da internet, Stefano Rodotà (1933-2017) se lançou àquele que talvez tenha sido o seu maior desafio intelectual: estudar a conturbada relação entre a rigidez objetiva do Direito e a liberdade subjetiva do que chamamos amor.
O livro Diritto d’amore (Laterza, 2015), último publicado pelo autor em vida, traz uma análise profunda das incompatibilidades e dificuldades do diálogo entre os dois, principalmente por parte do Direito: “As palavras direito e amor são compatíveis, podem ser pronunciadas juntas? Ou elas pertencem a lógicas tão conflitantes que ambas tentam se subjugar?”, pergunta o mestre italiano logo de cara.
“A lei tem sido muito usada como uma ferramenta para neutralizar o amor, como se o amor, deixado por si só, corresse o risco de dissolver a ordem social.”
Outro dos inúmeros pontos sensíveis tocados de modo lúcido pela obra é o de como se criou barreiras jurídicas para as relações afetivas, afastando-as cada vez mais da realidade e da natureza humana. Agindo dessa forma, o Direito restringe e ignora toda a complexidade da subjetividade humana. Na concepção de Rodotà, o amor tornou-se “alérgico à falta de jeito do Direito Civil”.
As ligações entre o matrimônio e o contrato de propriedade continuam aparentes: cada cônjuge, de maneira assimétrica, ainda acredita ter o direito sobre o corpo do outro e, sobre a pessoa do outro. Apoiado pelos dispositivos legais de diversas épocas, o homem (o sexo masculino) sempre foi o principal beneficiado da relação conjugal. Dele eram as regalias de proprietário, o que levou a um enrijecimento na dinâmica da vida a dois.
“Reafirmando o modelo masculino com a forma da norma jurídica, a lei levantou uma barreira robusta, às vezes inviolável, entre amor e vida”, escreveu Stefano. Uma barreira que se estende às escolhas individuais e ao desejo de cada um.
“Estamos diante de um conflito, travado, porém, não em pé de igualdade, com o poder concentrado substancialmente no lado da lei, que o exerce como ferramenta para disciplinar o amor, a ponto de negar à pessoa a liberdade de se apaixonar.”
Publicado apenas alguns meses antes do Ato nº 76, de 2016 (popularmente conhecido como Lei Cirinnà), dedicado à legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, o livro discute ainda a questão do casamento homoafetivo de forma crítica e humana.
Para Rodotà, distinguir o casamento homoafetivo do casamento héterossexual é inteiramente desnecessário e até errôneo, já que tal nomenclatura serve para mostrar um regime de exceção em relação ao matrimônio considerado “normal”. Ou seja, para ele, não deveria ser necessário o termo “casamento homoafetivo”, apenas casamento.
O autor defende, assim, uma radical liberdade do sujeito em suas escolhas sexuais e sentimentais, das quais o Direito não poderia intervir de outro modo que não fosse na forma de incentivo e de garantia de liberdades. Todo o resto é miudeza.
Escrever Diritto d’amore foi o último grande gesto de coragem de uma mente preocupada com a demasiada institucionalização da vida. Um grito em favor da liberdade e também da subjetividade.
“Amo, logo existo” (amo ergo sum), foi o novo cogito proposto por Stefano Rodotà. Uma lição que precisa ser repetida à exaustão por todo bom civilista, até que ela seja finalmente compreendida.
* Publicado originalmente no JOTA.