O Direito Japonês e a Síndrome de Indiana Jones

Por suas idiossincrasias e adaptações, Japão tornou-se vítima do Direito Comparado?

Por: Jocê Rodrigues

O Direito Comparado é uma área ao mesmo tempo radiante e encoberta por pesadas nuvens que vez ou outra podem confundir e fazer perder quem resolve se aventurar por seus caminhos.

Isso porque, na medida em que se aproxima de outras culturas, o grande Direito ocidental e “civilizado” tem o costume de dragar diferenças e discordâncias, como a furiosa Caríbdis homérica fazia com quem ousasse se aproximar demais do seu território.

O fato de nos sentirmos atraídos e de sermos impelidos ao distante, ao pouco conhecido, pode ser descrito como uma característica tipicamente ocidental. Em nossa história, é comum que a fragrância do exótico sempre tenha atraído espíritos curiosos e aventureiros.

Quando cansamos do corriqueiro, logo recorremos ao exótico, ao excêntrico, e quase sempre traçamos impressões equivocadas e pouco profundas sobre ele. É o que demonstrou o intelectual palestino Edward Said em seu clássico “Orientalismo”, onde tece severas críticas à imagem construída do Oriente por vozes pouco qualificadas e com interesses mais que intelectuais.

Uma das “vítimas” dessa abordagem despreparada e até mesmo rasa é o Direito japonês, que recebe olhares curiosos e por vezes abismados, mas que poucas vezes é aprofundado e discutido com a seriedade que merece.

É o que demonstra o ensaio Japan as a Victim of Comparative Law, escrito pelo italiano Giorgio Fabio Colombo, professor da Universidade de Nagoya, que também desenvolveu uma profunda e interessante pesquisa sobre as questões jurídicas (matrimoniais) presentes na ópera “Madama Butterfly”, de Giacomo Puccini, elegantemente expostas em seu livro L’avvocato di Madama Butterfly (O Barra O Edizioni, 2016)

Na literatura, Yukio Mishima (1925-1970) tentou discutir um pouco sobre a relação ambígua que tinha com relação ao sistema jurídico do seu país. Em Neve de Primavera, primeiro volume da tetralogia Mar de Fertilidade o jovem Shigekuni Honda por vezes se vê assaltado por questões que envolvem sua futura profissão. Filho de um juiz da Suprema Corte, ele se prepara para ingressar na faculdade de Direito assim que terminar o período que chamamos de Ensino Médio.

Durante o percurso do livro, voltado para, entre outras coisas, a história de amor entre o Kioaki Matsugae e bela Satoko, Mishima brinda o leitor atento com brilhantes lampejos sobre o Direito na sociedade japonesa no período de transição entre as eras Meiji (1868-1912) e Taisho (1912-1926), sempre pela voz séria e altiva de Honda.

Honda é o oposto de seu melhor amigo Kioaki. Enquanto o primeiro é racional e centrado, Kio tem personalidade volátil e se deixa levar ao sabor dos ventos das emoções. Honda é um rochedo de vontade e determinação. Aplicado e determinado, ele mantém os olhos fixos na nova constelação jurídica que vai se desenhando com a abertura do país às influências estrangeiras, sempre atento às dicotomias e às convergências de uma ciência tão ampla.

“O estudo do Direito era certamente uma estranha disciplina. Como o trabalho de um pescador extremamente ambicioso que com sua rede de malhas finas apanha os mais triviais incidentes da vida cotidiana e ao mesmo tempo se apodera do eternos movimento dos corpos celestes.”

Quando Honda passa a frequentar, por decisão própria os julgamentos no tribunal do próprio pai, vai descobrindo o mundo prático e técnico das leis, ampliando seu repertório e também sua curiosidade.

“Além disso, acrescia-se a oportunidade de Shigekuni pelo menos tomar conhecimento do severo e vigilante olho da lei, observando todo o detrito das paixões humanas, amorfo, escaldante e imundo ser processado em tempo real, segundo as receitas impessoais da justiça. O mero fato de frequentar este laboratório deveria ensinar Shigekuni a manejar os tubos de ensaio.”

No período Meiji (no qual se passa os acontecimentos de Neve de Primavera), a assimilação dos ordenamentos europeus aconteceu de modo extremo e radical, segundo Mario Losano.

Somente depois da queda da família dos Tokugawa, família xogunal que se estabelecera no poder em 1603, é que houve a transformação do Japão de um governo feudal para um país de poder militar burocrático moderno e mais aberto.

Entre as grandes transformações está a adoção do conceito que os ocidentais chamavam de “família” (kazoku), que não tinha realidade legal até aquele momento.

A certa altura da narrativa, mesmo com tantas cores, detalhes e sabores ainda a explorar, Honda, influenciado pelo pensamento da escola alemã e já ocidentalizado pelas entusiasmadas leituras do Direito Romano e do Direito Natural, acaba por se desinteressar pelas questões do Direito do próprio país e se volta também para o exótico quando se dedica ao estudo do Direito indiano e do “Código de Manu”. De certa forma, Honda havia se transformado em mais um explorador disposto a “desvendar” os mistérios de uma cultura distante.

Como muito bem salienta Giorgio Fabio Colombo, o Direito japonês, por suas idiossincrasias e adaptações de diversas correntes teóricas, acabou por se tornar uma “vítima” do Direito Comparado, sendo normalmente visto como um Direito “esquizofrênico”, e quase sempre é colocado em segundo ou terceiro plano.

Grandes tratados de Direito Comparado, como os de Mario Losano e René David, dedicam apenas algumas páginas para a descrição e contextualização do Direito nipônico.

Do mesmo modo, os artigos disponíveis sobre ele partem de impressões construídas às pressas, muitas vezes sem o preparo necessário para se entender a complexidade das dinâmicas apresentadas pelas leis da terra do sol nascente.

Um lacuna que só será satisfatoriamente preenchida quando deixarmos enxergá-lo sob uma ótica encastelada e exploratória. No Direito Comparado, não há mais espaço para a síndrome de Indiana Jones.

* Publicado originalmente no JOTA.

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