Herança incômoda
Due Diligence é ferramenta fundamental para evitar dores de cabeça no mundo da arte
Por: Jocê Rodrigues
O mundo da arte não é mais o mundo da pura e simples abstração. Quanto mais rápido se entender e aceitar isso, melhor. Hoje, o fazer artístico traz consigo uma infinidade de desdobramentos que impactam diretamente o mundo concreto. Seja na hora de criar, comprar, vender, emprestar, herdar ou até mesmo doar uma obra de arte, existem coisas importantes a saber e a fazer.
Ao lidar com obras de arte de qualquer natureza, é preciso estar sempre atento para não deslizar e cair nas diversas armadilhas espalhadas em terreno tão vasto. Como qualquer outra área, a arte, com suas consequências, tem particularidades e idiossincrasias que não podem ser ignoradas, sob pena de amargo e custoso arrependimento.
Vivemos em um momento bastante singular na história. Conforme aponta a crítica de arte Isabelle Graw, nas décadas de 1960 e 1970, era comum que artistas que atingiam certo sucesso financeiro perdessem sua credibilidade artística.
Eram vistos como vendidos e interesseiros, pouco ligados ao teor espiritual e idealista da arte. Mas a situação logo se reverteu e aqueles que faziam sucesso financeiramente deixaram de ser vistos com desconfiança, dando início a um novo paradigma que perdura até hoje.
É interessante notar que, no âmbito jurídico, o fenômeno artístico se mostra em suas diversas facetas. Direitos Autorais, Direito de Sequência, Propriedade Intelectual e assim por diante. No entanto, sua forte ligação com o mercado ainda é erroneamente negligenciada, expondo uma lacuna difícil de ser preenchida com o currículo atual.
Por conta disso, nem grandes e renomadas instituições escapam de situações incômodas.
Não é incomum que museus e galerias lidem com problemas relacionados a obras com proveniência duvidosa em seus acervos e que são, por exemplo, posteriormente reclamadas por herdeiros.
Neste quesito, o destino das obras saqueadas pelos nazistas durante a Segunda Guerra está entre as grandes questões a serem resolvidas.
Um caso emblemático envolve uma pintura de Gustav Klimt, o retrato da aristocrata de ascendência alemã Adele Bloch-Bauer, confiscada pelos nazistas e posteriormente acrescentada ao acervo do museu de Viena. A querela para reaver a obra levou anos e foi minuciosamente descrita no livro A Dama Dourada, da jornalista Anne-Marie O’Connor. Mais tarde, o livro ganhou uma adaptação para o cinema, dirigida por Simon Curtis.
Há alguns anos o Museu de arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), um dos mais importantes museus do país, tem enfrentado a suspeita de possuir em seu acervo obras de arte confiscadas e saqueadas pelo regime de Hitler.
Até agora, foram questionadas cinco esculturas do escultor francês Edgar Degas e uma pintura atribuída a um discípulo do pintor flamengo Quentin Matsys. Disputas que poderiam ter sido evitadas se certas medidas de due diligence fossem tomadas.
No entanto, se é verdade que é necessária orientação na hora de cuidar de assuntos que envolvam o trato legal com obras de arte, também é igualmente verdade que existe um déficit muito grande de profissionais devidamente capacitados para orientar corretamente as partes interessadas.
Soluções criativas
No comando da renomada Art Recovery International, o advogado americano Christopher Marinello se especializou em devolver obras de arte saqueadas pelo regime nazista aos seus legítimos proprietários. Segundo Marinello, em entrevista ao site Vocative, essas obras “são símbolos das perdas sofridas por essas famílias nas mãos dos nazistas. Essas pessoas estão recuperando parte de suas vidas que foram brutalmente tiradas delas”.
Por conta de algumas dificuldades do aparato jurídico com situações que envolvam a devolução de obras de arte, a Art Recovery International normalmente faz uso do que Marinello costuma chamar de “soluções criativas”, que envolvem desde conversas diplomáticas com embaixadores, até alguns braços torcidos – não literalmente torcidos, é claro.
A forma de persuasão varia de caso para caso e pode ser, por exemplo, uma ameaça de fazer contato com a imprensa. Foi o que aconteceu quando conseguiu devolver uma escultura do século XII à igreja de Saint Olav.
“Nunca partimos braços, mas não nos importamos de torcer uns quantos”, declarou ao periódico português Público, ao mesmo tempo em que estava envolvido no complicado caso Crivelli, que acabou por ganhar pouco tempo depois.
Na tentativa de deixar ainda mais clara a importância do processo de se investir em due diligence, Marinello uniu forças com outras empresas, que juntas formam o Art Due Diligence Group (ADDG), especializado em questões práticas de aquisição e venda de obras de arte. Uma maneira efetiva de conseguir clareza e transparência na hora de negociar.
Além de eficiente, o modelo de negócio liderado por Marinello soa interessante e desafiador até para ele mesmo. No seu cotidiano de trabalho, ele precisa se envolver em relações internacionais e se informar da jurisdição de países com os quais tem pouco ou nenhum contato. Um prato cheio para quem busca estar sempre um ou dois passos à frente.
Enquanto isso, o Brasil deixa passar oportunidades de integração e de aperfeiçoamento numa área em que deixa tanto a desejar. Todo mundo sabe que é errando que se aprende; o que não dá é insistir no erro e pagar para ver.
* Publicado originalmente no JOTA.