Falsos heróis: o ideário vitimista no mercado de arte
A estranha mitologia que transforma criminosos em vítimas
Por: Jocê Rodrigues
No mundo atual, todo os limites estão borrados. Em tempos onde certo e errado são considerados conceitos ultrapassados, fica cada vez mais difícil saber para onde estamos indo. A história da mentalidade, ou das mentalidades, tem nos revelado pontos de ruptura que, vez ou outra, fazem estremecer estruturas e convicções. Ilusão e realidade, verdade e mentira, certo e errado: está cada dia mais complicado saber a diferença.
No intrincado mundo da arte, uma das consequências das diversas crises de identidade que assolam a realidade atual pode ser vista no fascínio do público pela figura, quase sempre romantizada, do falsário. Alguém que intencionalmente engana, lucra e que no final ainda é visto como herói.
Acadêmicos, galeristas e até mesmo outros artistas fazem parte do crescente grupo de “defensores” da prática da falsificação como método de desforra contra perseguidores invisíveis. Para eles, falsificar é um modo de encurtar distâncias e de fazer justiça com as próprias mãos; de levantar a voz e se fazer ouvir em um mundo de surdez seletiva.
Uma das respostas possíveis para este estranho fenômeno é a de que os falsários passaram a ser vistos como artistas injustiçados pelos cruéis e desumanos mecanismos do mercado de arte.
Pessoas que, do seu jeito, estão enfrentando desmandos e despautérios perpetrados por quem realmente manda no negócio. Rebeldes com causa, em busca da libertação da ideia de arte, atualmente presa na gaiola do cifrão.
Por esse prisma, Beltrachi, Pereni, Ioni, Le Tiec e tantos outros notórios falsificadores passam de embusteiros profissionais à vítimas que não podem ser inteiramente responsabilizadas por seus atos, já que padecem do mal julgamento feito pelos poucos responsáveis por dizer quem é quem em um mercado de arte sempre concorrido e um tanto imprevisível.
Segundo o italiano Daniele Giglioli, a vítima se tornou o herói de nosso tempo. Professor de literatura comparada da Universidade de Bergamo, ele é autor do livro Crítica da Vítima, publicado no Brasil em 2016 pela editora Ayné. Apesar da aparente polêmica do título, Giglioli traz reflexões interessantes sobre emancipação e responsabilidade.
“Ser vítima dá prestígio, exige atenção, promete e promove reconhecimento, ativa um potente gerador de identidade, direito, autoestima. Imuniza contra qualquer crítica, garante inocência para além de qualquer dúvida razoável”, diz em um trecho.
Para Giglioli, foi usando e abusando do que ele chama de “posição vitimária” que Donald Trump e Giuseppe Conte chegaram ao poder. O poder da mitologia da vítima cativa, inflama e gera identificação. Elementos cruciais para criar uma aura de representatividade e legitimação de atos que, de outra forma, seriam vistos como legalmente injustificáveis.
É importante frisar que em seu ensaio, Daniele Giglioli não faz parecer que não existem vítimas reais. Elas são inúmeras e suas dores merecem toda nossa atenção e respeito. A sua crítica recai na supervalorização do imaginário da vítima, que geralmente exclui responsabilidades e permite quase tudo. As regras são suspensas e passa a vigorar a vingança do ressentimento, validada pelo discurso vitimista.
Exposições de falsificações são montadas com certa frequência em diversas partes do mundo. Em galerias, obras de falsificadores famosos são mostradas e vendidas a preços razoáveis e eles passam a gozar de fama e reconhecimento.
Deste modo, aumenta o culto em torno da “genialidade” questionadora dos falsários e os holofotes se voltam para os elogios, mesmo que indiretos, ao embuste e à trapaça.
Obviamente, não se fala aqui daquelas exposições pensadas com intuito pedagógico, como as que seguem a linha daquela realizada por Guy Isnard em 1955 no Grand Palais, em Paris. Isnard foi o primeiro policial francês a se especializar em crimes de falsificação de arte e chamou atenção ao montar uma exibição de falsificações da Mona Lisa apreendidas por ele. Mesmo com o mundo de ponta-cabeça, é importante lembrar que informar e defender são coisas completamente diferentes.
Essa crise de identidade, esse desligamento da realidade no qual o “infausto se torna desejável”, elevou os falsários ao perigoso status não mais de gênios incompreendidos, mas de vítimas que não podem ser colocadas em dúvida e das quais se deve eximir qualquer erro cometido, mesmo que o tal erro se qualifique como um crime perante os olhos da lei. Miopia e distorção dos fatos agora dominam a compreensão do real. O rei está nu, mas muitos insistem em elogiar a cor dos seus sapatos.
* Publicado originalmente no JOTA.