Direito multi, inter e transdisciplinar

Autoridades devem buscar apoio em outros saberes quando necessário

Por: Jocê Rodrigues

Mesmo quando não falam diretamente sobre Direito, alguns clássicos da literatura podem nos ensinar muito sobre os labirintos de solo movediço da natureza humana. Neles não encontramos apenas as virtudes e atos honrosos que elevam a alma, mas também toda a vileza e picardia que nos torna o complexo enigma que somos. Incluindo os conflitos, os interesses e as falhas de caráter que levam ao desvio das virtudes e dos deveres adquiridos.

Como escreveu Otto Maria Carpeaux no prefácio de As Cinzas do Purgatório: “As vozes proféticas do passado ensinam-nos a interpretar a nossa situação; interpretação que equivale a um julgamento do mundo e de nós mesmos, a um exame de consciência”.

Em Confissões de um Comedor de Ópio, originalmente publicado em 1921, com edições posteriores com importantes acréscimos, Thomas de Quincey, helenista dedicado e com vasto conhecimento da história dos mecanismos jurídicos, sempre acha um jeito maroto de tocar em assuntos que envolvam os sufocos legais que viveu na pele e na carne.

O livro é hoje considerado um clássico e narra a trajetória de um dos grandes intelectuais ingleses, que nos leva para um passeio pelas vielas mais escuras da sua memória. Incluindo aquelas que passam pelos desmandos cometidos por homens que deveriam cuidar dos bens deixados por seu pai.

Órfão de pai com apenas oito anos de idade, de Quincey e os irmãos ficaram sob os cuidados de quatro guardiões, que teriam como tarefa a administração dos bens e da educação dos jovens. Tarefa que foi executada com muita negligência e pouca razoabilidade. Sobre a guarda legal, escreveu com característica ironia:

Depois de padecer do abuso de autoridade daqueles que deveriam guiá-lo em direção ao melhor caminho, de Quincey parece pouco disposto a economizar verbo e erudição na hora de denunciar tais descomedimentos. “Razoavelmente, portanto, e sob qualquer analogia, um romano deve ter considerado um tutor doméstico comum quase inevitavelmente como um delinquente secreto, usando as oportunidades e os privilégios de seu cargo como meros instrumentos para exercer espoliação e ruína sobre a herança confiada a seus cuidados”, escreveu.

Posição que parece ser confirmada quando olhamos de perto alguns casos históricos do período citado, como o de Rutiliana, apresentada por Detlef  Liebs em Perante os Juízes Romanos. “Rutiliana recebeu vários tutores, que se mostraram, porém, negligentes, e por isso foram mais tarde condenados, destituídos e substituídos por outros”, conta Liebs. O que os levou a essa condenação foi a negligência deles em relação à situação das terras compradas pelo pai da moça antes de morrer, que exigia atenção e correta administração dos prazos e pagamentos. Com a falha deles veio a retomada das terras pelo vendedor, o que criou ainda mais problemas para os novos tutores, que enfim conseguiram resolver a situação, graças à intervenção do relator do caso ― um jurista membro do conselho imperial chamado Paulo.

Seja como for, o caso de Rutiliana, e de tantos outros, servem para mostrar que esse é um problema mais antigo do que andar para trás. Não quero dizer que não existam tutores responsáveis, preocupados com o futuro e com os interesses de seus tutelados (Rutiliana, por exemplo, teve os dois tipos). Mas tudo o que é ruim sempre chega ao descampado do conhecimento com pés mais ligeiros, calçados com aquelas botas de sete léguas, tão comuns nos contos de fadas do folclore europeu.

Arte, tutela e colaboração

Da mesma forma que acontece com algumas pessoas que perdem os pais e caem (legalmente) nas mãos de gente inescrupulosa e negligente, algumas obras intelectuais acabam por ter destino parecido. Ficam órfãs de criador(a) e correm o risco de serem desviadas da sua trajetória original.

Não é raro tomar conhecimento de que, por puro e simples interesse financeiro, alguns herdeiros, responsáveis pela tutela de obras de arte, acabam por agir como verdadeiras aves de rapina, abusando da confiança que lhes foi dada. É o que tentam demonstrar trabalhos como o do professor e procurador do Estado do Paraná Marco Antonio Lima Berberi, que se dedica a discutir os abusos perpetrados por alguns desses “guardiões” de conduta, no mínimo, duvidosa, que se deixam guiar apenas pelo tilintar das moedas.

“Colocar a produção artística nos incompletos trilhos do utilitarismo parece ser tarefa recorrente de muitos herdeiros”, aponta Berberi em sua tese de Doutorado, intitulada A Arte Após a Morte do Artista: Sucessão Hereditária e Direitos Autorais. “A eles não interessa lidar com valores que transcendam o campo financeiro. Suas bússolas seguem apontadas somente para o norte da cobiça monetária. Seus gestos constantemente fazem desaguar em mar de exagero, os legados que deveriam desembocar em amplo mar de fertilidade.”

Na mesma linha segue o trabalho da pesquisadora Joyce Finato Pires, que defendeu brilhante monografia (As Titularidades dos Direitos Autorais Herdados: A Importância Social dos Bens Difusos) sobre a importância de se considerar os Direitos Autorais como bens difusos, essenciais para a conformidade da dignidade humana.

Para ela, importante também é a conscientização de que o Direito não se faz sozinho. É preciso que aqueles que atuam na área estejam abertos para a colaboração de profissionais e de outras áreas do conhecimento. “Realizar um trabalho interdisciplinar é importante para dizer que tudo se mistura. O Direito não é e não está isolado em sua redoma de vidro, sem que qualquer outro assunto não possa se correlacionar”, defende.

Pensamento que se mostra em harmonia com a situação atual, como mostra o Report on the State of the Legal Market, relatório feito pelo Thomson Reuters Legal Executive Institute and Peer Monitor, em parceria com o Center on Ethics and the Legal Profession da Georgetown University Law Center, que prevê que cada vez mais os escritórios de advocacia precisarão aderir à multidisciplinaridade se quiserem sobreviver às demandas do mercado.

Deste modo, a tutela de bens culturais e direitos autorais também exige atenção e cuidado por parte das autoridades responsáveis, que devem sempre buscar ajuda e apoio em outras áreas e saberes quando necessário, a fim de que se evite a má conduta por parte de tutores mais interesseiros do que interessados.

Assim como a história escrita por Thomas de Quincey e o relato colhido por Liebs nos ajudam a sair do lugar comum e a pensar sobre situações de cunho jurídico sob outras perspectivas, muitos outros livros e autores que não figuram nos manuais,  que infelizmente ainda funcionam como muletas para muitos estudantes, podem suscitar ideias que ajudem a pavimentar o caminho para um Direito mais orgânico e compatível com a realidade dentro e fora dos tribunais.

* Publicado originalmente no JOTA.

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