As catábases do Direito

As viagens jurídicas ao inferno do totalitarismo

Por: Jocê Rodrigues

Nel mezzo del cammin di su vita, Dante Alighieri, o maior poeta italiano, viu-se cercado em uma selva escura e precisou descer aos confins do inferno para poder encontrar-se novamente. Guiado pelo maior poeta latino, entre ladrões, assassinos, perjuradores, enganadores e toda a sorte de pecadores, ele empreendeu uma jornada que marcou para sempre toda a literatura mundial.

Esse movimento de descida ao mundo inferior em busca de respostas ou de alguém é chamado de catábase (do grego Kατὰβασις, que pode ser traduzido como declínio ou ação de descer) e é tema recorrente entre as numerosas mitologias que ajudam a dar sentido ao mundo.

Antes de Dante, na mitologia grega, Teseu foi ao mundo inferior para raptar Perséfone, Hércules foi tomar de empréstimo o furioso cão de três cabeças e Orfeu viajou até o Hades para resgatar Eurídice.

Na Odisseia de Homero, o industrioso Odisseu conversa com conhecidos e outros guerreiros mortos na guerra da Trôade enquanto espera consultar o cego profeta Tirésias sobre o seu retorno para casa. Na Eneida de Virgílio, Enéias vai cumprir a promessa de visitar o seu pai Anquises.

Na filosofia, vemos o mesmo movimento no mito da caverna de Platão. Já em relação ao  cristianismo, não tem como não  lembrar da descida de Jesus à mansão dos mortos.

Como visto, os exemplos são os mais variados e podem ser facilmente encontrados também em outras culturas. É o caso do poema sumério “Ao Kurnugu”, que narra a descida da deusa do amor e guerra Ishtar à terra dos mortos, território regido por sua irmã Eréshkigal.

Empreendimento similar pretendia o herói Gilgamesh, que foi ao fundo do mar, do vazio absoluto, para buscar uma alga capaz de conferir a imortalidade para em seguida tentar ir ao mundo dos mortos resgatar seu amigo Enkidu. Ao que parece, tudo daria certo, não fosse a intervenção da serpente que lhe roubou a planta miraculosa enquanto estava ele a descansar.

As viagens ao submundo empreendidas por estes heróis vão muito além de um ato de heroísmo puro. Elas podem ser encaradas como representações dos momentos de desafios de tempos em tempos enfrentados não só por um indivíduo, mas por uma sociedade como um todo.

Toda instituição basilar, desde que o mundo é mundo, encara os perigos de tais declínios. Mas uma delas inspira especial preocupação quando eles acontecem.

O Direito, em sua extensa história, já precisou encarar diversas descidas ao inferno. Não foram poucas as vezes que a humanidade presenciou momentos jurídicos obscuros e que tiveram onerosas consequências por conta do espectro totalitário que insiste em rondar a existência.

De bate-pronto é possível citar algumas dessas inúmeras ocasiões. Foi assim, por exemplo, quando no ano 250 E.C. foram instauradas leis persecutórias que tornaram crime o fato de uma pessoa ser cristã. Mais adiante, de maneira contraditória ao passado, a instalação das duas versões da inquisição na Idade Média (entre os séculos XIII e XIV) e na Idade Moderna (entre os séculos XV e XIX), figura entre os acontecimentos controversos e complexos na história do direito.

Um pouco mais próximo do nosso tempo, Adolf Hitler, precedido por outras derrocada jurídicas em outras partes do mundo, subiu ao poder e, amparado por falsos conceitos jurídicos, como as chamadas Leis de Nuremberg, efetuou alguns dos atos mais grotescos com os quais a humanidade já se deparou. Entre guerras, golpes e suspensões, o Direito tem passado por algumas descidas sombrias ao mundo inferior. E cada vez que isso acontece, a sociedade como um todo se torna vulnerável

Entretanto, existe um detalhe importante ao se falar em catábase. Toda catábase só pode ser assim considerada se for seguida de uma anábase (do grego Ἀνάβασις), ou seja de uma subida, de um retorno ao mundo dos vivos.

Caso não haja este retorno, não estamos a falar de uma catábase, mas apenas de uma morte, de um decesso. Felizmente, toda vez em que precisou efetuar uma viagem ao tártaro, o Direito conseguiu retornar e trazer importantes lições de tudo o que viu e vivenciou enquanto estava lá embaixo. Ensinamentos importantes para que erros antigos não se repitam e para que os novos erros encontrem dificuldade em encontrar a luz do dia.

Atualmente, o país vive em um momento de tensão em relação ao futuro e ao alcance das forças jurídicas. Nesse momento, é necessário que se tome consciência dos perigos de novas visitas do Direito às entranhas do inferno do totalitarismo pois, mesmo que muitos dos heróis mitológicos tenham retornado triunfantes dessas descidas, não vivemos mais os tempos de Homero, Virgílio ou Dante e sempre existe o risco real de não retornar.

O preço em apostar em certas aventuras desvairadas, na esperança de que algo bom possa surgir em meio a delírios totalitários, evidentemente torna-se alto demais para todo um povo pagar.

* Publicado originalmente no JOTA.

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