Arte, memes e o mercado de criptoativos
Breves (e desatualizadas) considerações sobre os usos e repercussões do NFT
Por: Jocê Rodrigues, Stéfani Reimann Patz
Zoe Roth foi fotografada pelo pai em 2005, aos 4 anos, sorrindo do lado de fora de uma casa em chamas. A foto tornou-se um meme viral e a menina ficou conhecida como “Disaster Girl” (Garota Desastre).
Neste ano, Zoe transformou o meme em NFT e o leiloou pelo equivalente a US$ 473 mil. O olhar de malícia de uma criança que marcou o mundo pode ser um arauto do que está por vir quando o assunto são as novas tecnologias no mercado da arte, em especial, no que diz respeito ao NFT e a criptoarte.
A tecnologia tem proporcionado mudanças cada vez mais profundas nos mais diversos setores da sociedade e também do mercado. Turbinada pelo digital e por um ambiente disruptivo sem precedentes na história, ela se infiltrou em camadas cada vez mais humanas, sensíveis e íntimas da vida. Do sexo ao casamento; do trabalho ao lazer; da religão à morte: a tecnologia influencia nosso modo de pensar, agir e sentir.
A tecnologia tem proporcionado mudanças cada vez mais profundas nos mais diversos setores da sociedade e também do mercado. Turbinada pelo digital e por um ambiente disruptivo sem precedentes na história, ela se infiltrou em camadas cada vez mais humanas, sensíveis e íntimas da vida. Do sexo ao casamento; do trabalho ao lazer; da religão à morte: a tecnologia influencia nosso modo de pensar, agir e sentir.
Parafraseando o cantor e compositor brasileiro Zeca Pagodinho, “você sabe o que é NFT? Nunca vi, nem comprei, eu só ouço falar”. NFT é a sigla para non-fungible token – ou token não-fungível, no bom e velho português. Ele funciona como uma espécie de selo de autenticidade criptográfico que torna um ativo digital único, autêntico e escasso. Se é apenas um hype ou se veio para ficar, ainda não sabemos, é cedo para dizer.
O que temos certeza é que com ele surgiu um mercado de criptoativos baseado em imagens, memes, vídeos, mensagens de redes sociais, jogos e outras mídias que agora podem ter seus originais vendidos. Grandes empresas como Louis Vuitton, Burberry e Gucci também já estão se rendendo às roupas e calçados para avatares virtuais, os chamados “cripto fashion”.
Os casos de vendas de NFT que repercutiram, recentemente, foram o meme Doge (leiloado por cerca de US$ 4 milhões), o primeiro tuíte do CEO do Twitter (leiloado aproximadamente por US$ 2,9 milhões) e a obra Everydays: The first 5000 days, criada pelo artista digital Mike “Beeple” Winkelmann (vendida por US$ 69,3 milhões no leilão da Christie’s). A tecnologia apresenta-se como revolucionária por possibilitar a criação de um elemento de escassez nas obras de arte digitais, que até então podiam ser copiadas indefinidamente.
Portanto, não se trata mais apenas de tecnologia usada no combate aos crimes contra a arte, como já vinha sendo feito com o blockchain. É uma situação completamente diferente. Uma revolução que abre precedente para uma possível passagem da cultura material para a inteiramente digital.
Na visão de Gustavo Martins de Almeida, conselheiro e advogado do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) e membro das Comissões de Direito Autoral e Entretenimento da OAB-RJ e Instituto dos Advogados Brasileiros, estamos na Idade do Token Lascado ― basta observar a aceleração do tempo histórico e a migração do mundo material para o mundo imaterial/digital. Músicas, jornais, fotografias e até prontuários médicos, tudo na palma da mão, a apenas um clique de distância.
O mundo da arte parece estar em polvorosa, e não é para menos. Muitas das suas bases estão sendo questionadas e colocadas em xeque. Uma delas diz respeito justamente à importância da materialidade da obra, um dos pontos-chave para a definição do valor do trabalho artístico.
Recentemente, um coletivo de artistas chamado Fractal abalou o mundo dos colecionadores ao queimar um rascunho original do artista italiano Pablo Picasso com o intuito de chamar a atenção para o uso dos NFT’s. Ato visto como revolucionário por uns e de extremo mau gosto por outros.
Em meio a tudo isso, vai ser interessante notar o comportamento dos colecionadores mais tradicionais, em contraposição aos investidores mais jovens, mais atentos à marcha tecnológica e decididos a investir pesado para que ela continue a acelerar. E a coisa não para por aí.
O novo cenário também vai exigir uma nova posição dos pesquisadores do mercado de arte, que vão precisar atualizar seu repertório com novos conhecimentos e novas ferramentas.
Desafio jurídico
Como toda novidade, os NFT’s também estão gerando inquietações no mundo jurídico. Dos direitos autorais, passando pelo direito sucessório e até por causas ambientais, a temática gera mais dúvidas do que respostas. A proteção dos direitos autorais em ambiente digital vem sendo desafiada com a evolução tecnológica. A Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, conhecida como a Lei de Direitos Autorais, informa que as obras intelectuais tangíveis ou intangíveis são por ela protegidas.
Entretanto, inúmeros questionamentos práticos estão surgindo. Obras em domínio público podem ser transformadas em NFT? Caso afirmativo, por quem? Ou então, quais são os limites de um contrato de NFT? Trata-se de um contrato de adesão ou as partes podem chegar a um acordo em comum? Ainda, quais são os impactos ambientais dos NFTs, particularmente nesta era de mudanças climáticas, compensação de carbono e o New Green Deal?
Os tokens não-fungíveis têm grandes entusiastas e grandes críticos. Alguns investidores acreditam que eles tendem a se valorizar, representar um novo mercado e até uma forma de preservação artística, enquanto outros defendem que, em algum momento, o mercado não verá mais valor, além de apontar os inúmeros desafios do ponto de vista da proteção de propriedade intelectual de criações artísticas distribuídas por este meio.
Se a arte também pode ser vista como uma cosmotécnica, isto é, “uma unificação da ordem moral e da ordem cósmica por meio da atividade técnica”, segundo a definição do filósofo chinês Yuk Hui em seu novo livro Art and Cosmotechnics, isso significa que ela, assim como seus suportes, é apenas uma dentre diversas outras possibilidades. O problema está no modo em como o pensamento do nosso tempo tende a dragar diferenças e alteridades na busca por construir e exaltar apenas posições hegemônicas.
Pelo menos até o momento em que uma outra novidade, uma outra nova invenção vinda do vento venha roubar os holofotes. Até lá, seguimos tateando e especulando o que dá.
* Publicado originalmente no JOTA.